19 de dez. de 2007

Flor de Lótus


Eu sei que eles estão bem. Mesmo de longe, mesmo escondido, ainda vasculho, ainda tento manter contato.

Qual o tamanho dos seus sacrifícios? Qual o tamanho das suas escolhas? Qual o tamanho das suas responsabilidades? Qual o tamanho das suas expectativas? Qual o tamanho da sua culpa? Qual o tamanho da cruz que você escolheu carregar?

Sete anos e já tinha tanta responsabilidade, era quem cuidava dos irmãos menores, da comida, da louça, da roupa, da televisão. Não viu a infância passar, não viu a necessidade de brincar. Brincava entre os afazeres, brincava entre as responsabilidades de gente grande. Sete anos, apenas sete, e calculava os horários, e brincava com os irmãos menores, e lembrava-se do almoço, e corria para pegar a roupa quando começava a chover. Estava cansado. Por que tanta responsabilidade para um garoto que merecia apenas se preocupar em tirar boas notas e rir a toa? Pensava no pai, sentia falta da mãe, era o pai e a mãe dos irmãos. Na sua cabeça ecoava apenas uma palavra: culpado.

Cinqüenta e seis anos, a vida ensinou-a a ser amarga, guiava seus negócios com mãos de ferro, tinha tudo em suas mãos, sua palavra era lei. Não gostava de ser contrariada, humilhava quem não gostava, achava que isso era status e promoção, o respeito através do medo, assumiu os negócios do marido e após um câncer que o levou e cá está ela, fria, serena, vivendo para a empresa e para seu filho, mal sabia que depois de cinqüenta e quatro anos, a mesma vida que o traiu tempo atrás, e o trouxe ao auge, voltaria a puxar-lhe as pernas e a deixar de joelhos. Foi um erro, uma falha, uma escolha. Certas coisas nós nunca desejamos a ninguém, nem ela desejou, nem ele, nem eu, são fatos que apenas acontecem, mas que estão interligados, que estão conectados de um modo ou de outro. Não é coincidência, nem destino, é causalidade. A causa e o efeito.

Vinte e oito anos, dois turnos, plantões, contas vencendo, três filhos para sustentar, o cabelo impecável, a roupa de um branco exímio, maquiagem equivalente à seriedade da profissão. Nada era fácil, casou-se grávida contra a vontade dos pais, morou em um fundo de casa que chamava de lar, e realmente o era, a família era pobre, porém estruturada. Seu marido trabalhava como segurança particular de uma das maiores empresarias do ramo de hotelaria. Ela acabou o curso de enfermagem e entrou em um dos mais renomados hospitais, envelheceu ao longo dos anos, mas conseguia conciliar as tarefas de casa e o trabalho externo, era mãe atenciosa, dedicada, sempre preocupada com os filhos, buscava os melhores colégios que o dinheiro podia comprar. Depois de dois anos de casada, deu a luz a gêmeos, não estavam nos planos, alto custo, ajuda dos pais e amigos fizeram sua vida se tornar mais apertada, filhos custam caro, dão trabalho, sugam nosso sangue e não prezam nosso suor. Filhos, a felicidade mais particular dos pais, a que mais orgulha e a que menos valoriza. Às vezes cachorros são mais agradecidos que os filhos. Circunstâncias de toda uma vida Você trilha o caminho dos filhos, até que ele descarrila. E então você se pergunta: Qual o tamanho das suas expectativas?

Vinte e dois anos, apenas vinte e dois anos e dependia de tudo e de todos, tinha o movimento do dedo indicador e o cérebro funcionando. Era nada e ninguém, era um cérebro em funcionamento sem forças para se locomover. Não foi sua culpa, não foi seu erro. Foi uma fatalidade. Hoje pensa como ninguém em como uma fração de segundos pode mudar sua vida. Aos vinte tinha tudo, aos vinte e dois, apenas aguarda, aguarda a ordem divina, ou a piedade humana. Seus olhos limitados enxergavam apenas onde alcançavam, sem ajuda externa, não poderia fazer nada. A sonda o mantinha alimentado. Havia tubos em seu pescoço, sua cama era reclinável, seu dedo acoplado ao botão. Sua diversão era chamar as enfermeiras que estavam ficando cansadas de tanto alarme falso.

Trinta e cinco anos e soube crescer na profissão, uma profissão de risco, é claro, mas ainda sim, uma profissão que se tornou rentável. O terno preto, a camisa branca, os indispensáveis óculos escuros, que escondem os olhos atenciosos a cada segundo. Quando ficou desempregado a única possibilidade que apareceu era essa, segurança. Tinha um filho para criar, decidira casar-se com sua atual esposa. Era um pai de família, precisou afastar-se e esquecer os tempos de boemia e dedicar-se a trabalhar, e muito. Sua esposa o ensinou a priorizar os estudos dos filhos, assim, sempre que podia trabalhava em turnos dobrados para complementar renda. Em três anos recebeu a oportunidade de ser promovido. E a aceitou. Virou chefe de segurança. Da segurança particular de uma das mais renomadas empresarias do ramo de hotelaria do país. Sim, é o pai de três filhos, sendo dois gêmeos que chegaram sem planejamento. A vinda dos gêmeos certamente foi uma motivação a mais para seu sucesso profissional. Era preciso ganhar mais. Trabalhou dobrado e dedicado, chamou a atenção da chefia, e na primeira oportunidade abraçou-a e cresceu. Foi seu primeiro grande salto na vida e o início da sua desgraça. Talvez conseguisse sustentar a família com um pouco menos, mas ganhava mais, bonificações, décimo terceiro, vendia as férias, horas extras.

Sete anos e quantas festas perdidas? Quantos “Dia dos Pais” e “Dia das Mães” sem representantes? Quantos natais com os vizinhos? E nesse em especial, quanta amargura. Nesse final de ano, passaria junto com sua mãe, no hospital, pois não tinha mais ninguém para a passagem. Seus vizinhos, parceiros de quase todos os anos, iriam viajar. Teria de passar a virada vendo sua mãe trabalhar, na recepção de um hospital. Quanta tristeza um hospital. Pessoas morrendo, sofrendo, sangrando, gritando, dormindo. As pessoas na recepção de um hospital são tensas, ásperas, esperançosas ou desesperadas. Os olhares atentos a cada porta aberta, a cada passo do enfermeiro ou do médico. As noticias são boas ou ruins, as reações são tristes ou felizes, é uma incógnita, é como se estivessem à porta do paraíso, com um grande juiz acusando ou libertando, dando uma segunda chance ou delimitando o fim da linha. Hospitais o davam medo. Eram sempre brancos, como um ritual, como uma coisa nobre, como uma purificação, a falsa paz, a falsa esperança na cor que demonstrava vida. Foi naquela recepção que ele viu uma senhora sentada. Chorando. Sozinha na noite de natal. Não havia mais ninguém apenas aquela senhora e aquele garoto.

Cinqüenta e seis anos, mal sabia que enfrentaria depois de tanto tempo de vida, sua fase mais depressiva. Tomava remédios para dormir, para enxaqueca, vitaminas, anti-depressivos, controladores de hormônio, dentre outros. Enfrentou a morte de seu marido e novamente a morte bateu-lhe a porta. Estava sozinha. Enfrentava a situação de frente, como uma rocha. Mas naquele dia desmoronou. Era noite de natal, estava ela com seu filho debilitado e, em partes, a culpa era sua. Seu filho movida um dedo e piscava, essa era toda a sua mobilidade. Era um dejeto humano, um vegetal com pensamentos, via aquele rapaz alegre e sempre festivo piscar os olhos tristes depois de um ano em coma. Seu filho, seu legado, seu único herdeiro, estava piscando e pedindo para ser “desligado”. Seus olhos pediam socorro. Era insuportável não chorar a cada quinze minutos. Era impossível se acostumar com tamanho descaso da vida humana. Pensava como Deus podia ter esquecido do seu filho. Se perguntava: por que? Estava prestes a tomar medidas drásticas. Estava desesperada.

Vinte e oito anos. Há dois levava a casa nas costas. Estava descrente da vida, descrente das pessoas, descrente de tudo. Envelhecera muito nesses dois anos, emagrecera terrivelmente, trabalhava no hospital e não se cuidava, não comia direito, esquecia dos filhos, sabia que faltava atenção para com eles. Mas quem lhe dava atenção? Todos os dias acordava com metas a serem cumpridas, com horas extras que complementariam sua pequena renda. Brigava por bolsas de estudo nas escolas, na creche, não via uma luz no fim do túnel, não sabia como faria para manter a casa, as contas, os estudos, a comida, a vestimenta, o material, a condução, a saúde. Seu marido não havia só perdido o emprego, mas perdeu também a liberdade. Seu querido marido, amável, afável, pai atencioso, amoroso participativo, em um surto de burrice, um espasmo de estupidez, mudou sua vida. Ela o odeia. Foi o responsável pela degradação não de apenas uma vida, mas de sete, contando com a dele. Eram sete pessoas interligadas por um momento de fúria. Ela dorme quando chega em casa, ela toma tranqüilizantes algumas vezes por semana, se auto-medicava, congelou sua vida. Não havia mais silencio suficiente, não havia mais calma. Ela era estressada, se incomodava com tudo, com o lugar ocupado no ônibus, com o lado esquerdo da escada rolante ocupado, com pessoas conversando alto, com o trânsito, com o excesso de zelo nas outras funcionárias com os pacientes, com seus filhos chorando, com alguém lhe contando o dia. Era problemática, era perturbada, desgastada. Se irritava freqüentemente com um paciente que teimava em apertar o botão de avisa a cada cinco minutos: “Minha vontade é a de quebrar o seu dedo, e deixar só os suas pálpebras funcionando.” As vezes, pensava isso, as vezes falava isso. Depois tinha remorso, mas o remorso passava quando era novamente atrapalhada pelo botão apertado. Odiava-o, como odiava seu marido.

Vinte e dois anos e se lembrava dos seus vinte anos, seu aniversário, decidiu comemorar como nunca, viajaria para o exterior em dois dias, era a viagem da sua vida, sua despedida Exagerou demais na bebida, desmanchou de sua namorada e ficou com cinco garotas aquela noite. Dirigiu bêbado, mas bem devagar, a pista era pequena e a toda hora precisava concertar o carro na faixa correta. Parou no sinal vermelho, olhou para o espelho, limpou os olhos vermelhos para conter o sono, estava há dois quarteirões de casa. Andou calmamente, a 20km/h. Não notou que o sinal estava fechado, não notou que vinha um outro carro há 140km/h, não notou que estava sem o cinto de segurança. Foi um milagre ter se salvado. Acordou um ano depois, movia as pálpebras, e o dedo indicador da mão direita.

Trinta e cinco anos, preso, condenado, culpado, e réu confesso. Não havia desculpas. Era condenado por uma tentativa de assassinato, criminoso e fichado. Sofria na cadeia com os maus tratos dos outros presos, vivia no inferno, não tinha contato com sua família, não tinha amigos, não tinha esperança, sairia de lá sem rumo, sem projeção, sem recuperação. suas cartas não tinham resposta, suas visitas eram inexistentes, não tinha mais família, não tinha mais contato, não procurava a família nos dias em que podia. Tinha vergonha de ter mudado o rumo das coisas, de ter feito tamanha bobagem. Lembrava-se de tudo como se fosse ontem e orava todas as noites para que o tempo voltasse e ele pudesse mudar o passado. Um erro, um único erro e mudou sua vida. Havia sido acusado injustamente de furto pela dona da rede de hotéis que o empregara e em quem depositou sua confiança. Não havia mais nada a se fazer, não havia como provar sua inocência, foi humilhado perante todos, rebaixado, demitido: - “Nunca mais trabalhará na vida”. – ouvia todo o dia estas palavras que mudaram sua vida. Queria matá-la. Pensou que merecia. Bebeu aqueles dias, brigou com sua esposa, saiu de casa e três dias depois fez algo que mudaria sua vida. Retornou a casa daquela mulher, com arma em punho resolveu que, se fosse acusado, seria acusado com motivos. Faria sim um roubo. Na calada da noite, ele conhecia sua rotina, seus hábitos, sua segurança que, mesmo reforçada, tinha falhas que ele conhecia. Foi um sucesso. Colocou umas pratarias no carro, algo que parecia ter muito valor, mas entrou no carro, e acelerou muito, pois a polícia já havia sido chamada. Cem, cento e dez, cento e vinte, cento e trinta, cento e quarenta quilômetros por hora. Até que o velocímetro ficou zerado. Sim, bateu em um carro, na lateral do motorista. Na hora tudo escureceu. Foi preso, dessa vez por homicídio.

Sete anos e uma única palavra quando saiu de um dos quartos: - Pronto. – disse o garoto àquela velha senhora – Agora tenho que ir, minha mãe acabou o plantão.

Cinqüenta e seis anos, ela não chorava mais naquela sala de espera. Levantou-se calmamente. Foi para casa, sentou-se na sala com whisky na mão, os olhos marejados, esperava ansiosa o telefonema da morte de seu filho.

Vinte e oito anos, e todos os meses recebia, misteriosamente, cinco mil por mês, nunca se soube de quem, e ela nunca correu atrás para saber, a principio acreditou ser de seu marido, lícita ou ilicitamente, não importava, ela conseguiu, depois daquele natal, colocar as contas em dia, dar estudos a seus filhos, mas nunca perdoou seu marido, não o queria pela frente, não respondeu suas cartas e para seus filhos, ele havia os deixado.

Vinte e dois anos, abriu os olhos, no teto pendurado, um código que poderia fazer com as mãos, o velho código Morse, e assim ele descreveu cinco letras: -- --- .-. - .

Trinta e cinco anos, recebeu apenas uma visita de sua esposa, ela estaria se mudando, levando os filhos, e queria que ele sumisse, nunca mais aparecesse. Agradeceu os cinco mil mensais que ele estava o enviando. Ele sabia que era obra da sua ex-patroa. Ela também se sentia culpada. Ele aceitou. Nunca mais viu os filhos, nem a esposa. Ficou com seu nome, seu rancor, sua estupidez, sua culpa. Qual o tamanho da sua culpa?

Sete anos, ele mal sabe o que fez, mas fez, ele saberá, aos sete anos perdeu a inocência ao desligar aquele aparelho. Aquela mulher ficara realmente feliz quando isso foi feito. E ela cumpriu o trato dando-lhe a mesada que prometeu. Ele guardou segredo. Para sempre. Qual o tamanho das suas responsabilidades? Qual o tamanho dos seus sacrifícios?

Cinqüenta e seis anos, uma medida drástica, um segredo inconfessável. Morreria com a culpa, mas ela fez sua escolha. Qual o tamanho das suas escolhas?

Vinte e oito anos, e nunca desvendou para o marido a mensagem que tinha no celular que o mesmo esqueceu no dia do acidente. Era de sua ex-patroa e dizia: “Desculpa, venha ao escritório para conversarmos e chegarmos a um acordo, tudo está esclarecido”. Ela nunca falou, pois não mudaria nada. Suas expectativas foram supridas anos depois. Qual o tamanho das suas expectativas?

Eu sei que eles estão bem. Mesmo de longe, mesmo escondido, ainda vasculho, ainda tento manter contato.

Qual o tamanho da cruz que você escolheu carregar?

No fundo nossa vida é como a flor de lótus, você planta a semente em um pântano, em um lugar tenebroso, e tenta florescer da melhor maneira possível. No fundo do pântano você guarda seus segredos e lembra-se apenas da beleza da flor que há do lado de fora da água.

7 de dez. de 2007

O Labirinto

Quando puder feche os olhos.
Imagine-se em um labirinto, um labirinto de paredes cinzas, com um chão frio, com seus azulejos cinzas. Ande por ele, não tenha medo, o cinza é cinza, é apenas uma cor, continue andando, descompassado, não tem problema, siga seu ritmo, ande com força ou com delicadeza, ande atencioso ou disperso, não se preocupe, repito, apenas ande.
Olhe para cima, o céu está cinza, o sol está lá, mas você não vê.
Continue andando, sem rumo, apenas siga o seu instinto, não se preocupe que este labirinto tem um final, mas não siga a lógica, não siga o curso natural das coisas, deixe o seu instinto e a sua intuição fluírem, siga o cinza, sem lados, sem chão, sem céu, cinza, cinza e mais cinza.
Imagine suas roupas cinzas e você se misturando a todo aquele cenário. Sinta toda a perfídia se dispersando em todo mundo, por igual, sem lados, sem objetivos, sinta que você está se libertando dos grilhões, se libertando das admoestações de conceitos pré-estipulados de certo e errado, estipulados por alguém que se tornou cinza. Sinta a calma, a tranqüilidade, esqueça um pouco da correria da vida moderna, da correria da sua vida que lhe impõe horários, discos rígidos, posturas, vestimentas. Somos tão livres e tão presos, presos na nossa própria liberdade, injustiçados pela nossa própria justiça, que gera a iniqüidade, o excesso. Somos vitimas e a solução dos problemas que nós mesmos criamos, somos uma centelha em um fogaréu, mas para transformar nada em fogaréu, só precisamos de uma centelha. Reclamamos do bolor quando sabemos que ele é quem avisa que o tempo já se foi, é o câncer dizendo que há algo de errado, é a vida dizendo que morte está chegando.
Sorria enquanto tem dentes, penteie enquanto o cabelo ainda cresce, viva enquanto ainda se é jovem, feche os olhos enquanto ainda acorda, chora enquanto seu coração ainda é inocente, fique irado enquanto achas que pode mudar o mundo, sonhe enquanto sua imaginação ainda não se atrofiou. Ande enquanto ainda há labirinto. Não fique parado, não adianta olhar para trás, também é cinza, como na frente, como dos lados, como embaixo, como em cima, como sua roupa, como sua pele pálida, como seu sangue congelado, como sua boca seca, como seus olhos sem vida.
Lembre-se, enquanto anda, de sua vida quando era mais jovem, lembre-se dos bons momentos vividos, lembre-se como você era feliz e duvidava, de como era satisfeito e a satisfação não o satisfazia, de como era complexa a simplicidade da vida e como a complexidade o faz querer ser simples, de como você quer apressar o tempo quando se é jovem e de como se quer parar o tempo quando se é velho. Ande, continue andando, e note que atrás de você, sim, nas suas costas, coloque as mãos para trás, sente? Sim há um boldrié para a fixação da corda que há em você. Uma corda fina, quase imperceptível, mas muito resistente. Olhe para trás, pode olhar, mas não ande para trás, você não consegue, você só anda para frente. Está vendo? Você está andando, serenamente. Certamente você pouco se lembra do que você pensou quando começou a andar por esse labirinto, correto? Não tem problema, foi proposital, as coisas tendem a surgir naturalmente, mas continue andando, abra os olhos, note tudo a sua volta. Pouco a pouco você vai notando que o cinza possui nuances. Sim, cinza claro, cinza escuro, cinza fosco, cinza metálico.
Você está preparado, comece a pisar mais forte e mais apressado, arrisque um pouco de cor. Imagine as paredes verdes, mas saiba que elas são cinzas, mas só estamos pensando, correto? Vamos, jogue o verde nas paredes, o abóbora nos pés, o azul no céu, vista roupas coloridas, enfeite o caminho.
Agora assopre, e dissipe toda a névoa que ficava a sua frente, deixe que seus olhos não apenas olhem, mas que eles vejam, que enxerguem de fato toda a beleza que você realiza em sua mente, em sua jornada pelo labirinto, ande, ande, ande. Já estamos acabando.
Comece a ver outras pessoas, comece a interagir, a conversar, a fazer amor, a dar “oi” e “adeus”, cumprimente, discuta, sinta-se vivo, mas nunca pare, faça tudo isso andando, não importa que tudo é cinza, para você é colorido.
Olhe mais adiante, veja que o cinza retorna, ele sempre retorna, mas olhe ao seu redor, pessoas felizes, cores felizes, sim, veja só, você está no labirinto e as folhas estão todas nas árvores carregadas de frutos, o céu está brilhando, os pássaros cantando e as pessoas felizes.
Por que?
Por que você está parado?
Não pare, continue andando, é obrigatório, por mais que você brigue contra, o labirinto começa a te empurrar, ele vai acabando, eu disse para você não olhar para trás. É cinza, mesmo onde você acabou de passar é cinza.
Pare de tentar brigar contra o labirinto, para que toda essa força?
Seus pés estão se machucando, pois você tenta segurar a parede. É inútil. Olhe do seu lado, muitas pessoas, quase todas as pessoas fazem o mesmo e se esquecem que poderiam estar correndo através do labirinto colorido, mas vocês preferem o pior lado, o pior jeito. Maldito livre arbítrio, para que desperdiça o tempo tentando evitar o inevitável, tentando transpor o intransponível, para que fere os pés no calcário se pode correr na grama, na areia?
Por que o conformismo é confundido com preguiça? Por que a falta de vontade não pode ser encarada como vontade de não fazer nada? A eterna incongruência.
Notou quanto tempo você demorou para perceber que não é possível? Para ver que você abriu os olhos para as dúvidas e fechou os olhos para a felicidade? Você tem medo de ser feliz. Medo de que sua vida perca a procura, que não tenha mais objetivos, próprio do ser humano. A procura acaba e, ao invés de gozar da felicidade, procura outro objetivo. A busca incessante.
Agora está tudo cinza, não resta mais nada além de continuar percorrendo. Esqueça as paredes coloridas, foque o cinza, Apenas o cinza. Você ainda está caminhando, mesmo que obrigado, está respirando por aparelhos, está na sobrevida, nos últimos suspiros da caminhada do labirinto.
Olhe ao fundo, olhe a luz. Você poderia parar de ler o momento que você quisesse, a maioria parará, por medo, por falta de vontade, por não achar a mínima graça, mas você está aqui. Chegou ao fim da linha, o final do labirinto a sua frente.
Agora, rapidamente, tente se lembrar de tudo o que você fez até chegar aqui. Das suas paradas forçadas, das suas escolhas mal feitas, dos seus insucessos, das suas virtudes, dos seus amigos. Valeu a pena? Será que tudo valeu a pena? O que faria se entrasse novamente neste labirinto acinzentado?
Agora imagine um clarão, bem forte, e por fim, veja o que você quiser ver. Você acaba de morrer.

30 de out. de 2007

Casa de Campo


Voltei a minha casa de campo.
Abri a porta de madeira surrada pela chuva da noite anterior. Uma maçaneta enferrujada, que quase não se abria, forcei para entrar, mas consegui. O ranger da porta é de assustar, ainda capacitado pela corrente de vento forte e frio daquele dia e o barulho da garoa fina que pingava nas poças d´agua.
Minha velha casa de campo. Uma casinha pequena, casinha de solteiro. Guardava a melancolia dos dias gelados, ainda mais naquele fim de tarde de um dia nublado. Sem vizinhos, sem barulho, sem crianças na porta, sem televisão ou rádio, sem nada. O lugar mais parado da cidade mais parada desse mundo mais agitado. O refúgio dos desesperados por oxigênio, silêncio e paz. O leito dos moribundos.
Pisava com cuidado para não escorregar na lama que estava no chão, junto com a sujeira acumulada e o pó dos móveis. Da vontade de voltar para o carro e seguir tropeçando nos mesmos erros. Mas no fundo tudo o que precisamos é de um tempo recluso para melhorar. E é pra isso que servem as casas de campo, normalmente é uma casa pequena como a minha, com detalhes, pequenos detalhes que te lembrar sempre algo maior e especial. Como o taco solto do chão de madeira que se desprendeu quando comecei a tirar a lama. Da mesinha de centro com a marca do copo e de fogo da bituca de um cigarro distraído. Mas passamos o pano e a mancha sai, com dificuldade, mas sai.
A bituca já é mais complicada. Mas dei um jeito. Com muito esforço de alguns dias e evitando olhá-la, aos poucos ela sai. Pensei em queimar o móvel todo, mas é perigoso, poderia queimar a casa toda. Deixei a marca lá, com o tempo eu me acostumo e me esqueço dela.
Tirei o colchão para fora, para tomar um ar, mesmo com o tempo fechado, era preciso que ele perdesse o cheiro de mofo, e sentisse o ar fresco, muito fresco por sinal. Joguei fora a roupa de cama velha e do porta-malas do meu carro, trouxe tudo novo. Travesseiros, edredom, cobertor, fronhas, enfim, tudo o que é necessário para mudar a cara daquele lugar. Tirei o pó dos móveis, joguei fora as folhas de sulfite velhas que continham seu nome. As fotos dos retratos que se continuassem ali, agora seriam como adagas afiadas penetrando em cada pensamento e cada sentimento que eu me propus a ter sobre você.
Abria as janelas com medo de que caísse alguma gota da garoa fina que caía lá fora. Eram frestas, pequenas frestas por onde o ar circulava e eu podia ver o limitado horizonte e por onde saía o pó.
Lavei a louça que fora guardada a muito tempo. Notei os copos antigos, os talheres feitos de modo artesanal. Nada muito chique, apenas uma mobília simples, uma louça simples, para uma pessoa simples, em uma casa simples.
A simplicidade é estranha não?
Como é simples prometer e como é simples não cumprir.
Como é simples dizer e como é simples não agir.
Como é simples se decepcionar e como é simples ser infeliz.
Por isso sempre optamos pelo simples. Dá menos trabalho.
Como é simples ter acesso e não procurar.
Como é simples ter o número e não ligar.
Como é simples ter o poder e não aproveitar.
Como é simples ser feliz e desperdiçar.
Simplicidade relativa, instigante, engraçada.
Mas voltemos a casa. Poderia ter chamado alguém para limpá-la comigo. Mas não quero diarista. Tem coisas que você precisa encarar sozinho. Até porque os diaristas estão sempre atrás de um emprego fixo. Diaristas muitas vezes se esquecem de limpar a própria casa para limpar as outras. Quem me diz que não fui um diarista?
Certamente eu limpei a casa da qual fui expluso. Deixando-a limpa, perfumada, pronta para, cruelmente, receber alguém. Como não se decepcionar com isso? Nossa casa ao léu, e a casa onde você morava intacta. Por isso voltei, pedi um tempo, queria limpar minha casa. É preciso. Repensar conceitos, rever o que é ético. Limpar a casa. Fazer uma bela faxina. Ignorar o que não vale a pena. Guardar recordações boas, mas só algumas, porque recordações boas ocupam espaço e não queremos espaços ocupados se queremos mudanças. Então selecionei bem o que valia a pena.
Estou cansado. Mas ficou um ótimo trabalho, hora de tomar banho, tirar o resto de sujeiro que grudou ao corpo. Lavar bem os cabelos, esfregar o rosto, cuidar dos pés.
Vestir uma roupa confortável. Ligar o fogão, ferver a água, pegar sua xícara favorita, colocar os sachês. Consegue sentir o cheiro do chá se misturando com o aroma do lustra-móveis? Consegue sentir o cheiro de madeira perfumada? Sente o frio passando pelas meias no chão descalço? Isso. Peguei alguns biscoitos, esqueci o regime, a academia, a conversa non-grata, a fofoca, as lamentações, os chefes, os amigos, as notícias, o mundo. Sentei na cadeira que ficava ao lado da cama em frente a janela. Dá trabalho esquecer alguém, mas no final é tão bom saber que somos auto-suficientes. É tão bom ver a casa limpa.
É certo que ainda chove lá fora, mas aqui dentro está tudo bem. Para as goteiras tenho baldes. Para a chuva, janelas. Para o frio, edredom. Para o cansaço, uma cama. Para o sofrimento, um bom livro. E se o sofrimento apertar, trouxe um travesseiro extra.
Para isso que servem as casas de campo, isoladas do mundo. Uma hora a chuva pára, os animais saem dos esconderijos, os pássaros vem beber nas poças d´agua, os homens andam com seus cavalos. Mas ainda é frio. Vou acabar meu chá, ler mais um pouco do meu livro e pegar no sono. Amanhã parece que a frente fria continua. Mas o clima é tão imprevisível. Pelo menos minha casa está limpa e eu não preciso ir mais pra casa de ninguém.
Quem quiser, bata na porta.

2 de out. de 2007

Le Cirque de Ma Vie

Nascemos de uma mistura, a mistura de duas grandes apresentações, de duas peças semi-acabadas.
Os coreógrafos me deram um nome. Bonito por sinal, mas todos aprenderam que não se pode levar muito em conta o nome de uma peça, pois, mesmo que nós tentemos mostrar algumas situações a serem seguidas, nunca sabemos como ela irá se desenhar.
Eis a peça da minha vida. Meus pais, coreógrafos, tentam nos mostrar uma certa lógica, uma experiência de quem já caiu muito, mas já deu muitas alegrias, muitas demonstrações de força, de habilidade e de coragem. Mesmo assim, a teoria é diferente da prática. Mesmo que os movimentos nos sejam mostrados, nós olhamos com certa desconfiança e tentamos ultrapassar os limites que nos são impostos. Os coreógrafos sempre querem nosso bem, nos dão tarefas um pouco mais fáceis de serem executadas. Estão sempre preocupados com que mostremos muita beleza, mas em primeiro plano, preocupam-se com nossa segurança.
Verdade seja dita, se nós fizéssemos apenas o que mandassem nossos coreógrafos, nosso show seria até belo, digno de ser revisto, mas seria limitado. Nós nunca saberíamos nossa verdadeira capacidade. Só conhecemos o nosso limite quando o ultrapassamos. Quando a margem nos é imposta. Quando o bolo queima, quando o freio não funciona, quando você cansa, quando o coração pára, quando o castelo de cartas cai, quando a cobaia morre.
Sacrifícios. A vida não seria vida sem sacrifícios, quando sacrificamos algo, queremos algo em troca, algo maior, algo desejado. Quantos sacrifícios nós fizemos ao longo da nossa jornada? Quantas vezes trocamos festas por estudos? Quantas vezes trocamos estudos por festas? Quantas opções, mas só podemos escolher uma. Apenas uma. E cada escolha gera uma conseqüência. Coisas da vida.
E o que é a vida senão uma grande peça teatral?
Tem um planeta inteiro como cenário. Onde todos formam a platéia, e todos estão no palco. Você é um ator-expectador. Controla sua vida, mas apenas a sua.
Um roteiro escrito a cada dia. Não, não é escrito em tempo real. Novamente digo, as opções de ontem são o roteiro de hoje.
O que? Duvida de mim?
Preste bem atenção. Posso comprovar. Quando você marca uma consulta hoje, para daqui 30 dias às 16h. Onde você estará daqui 30 dias às 16h? Se você marca de esperar uma pessoa dentro de 30 minutos, onde você estará daqui 30 minutos? Há variáveis, mas até as variáveis somos nós que escrevemos.
O que? Continua duvidando? Já sei, eis a sua pergunta. E se eu tropeçar e machucar minha perna daqui 15 minutos, posso me atrasar para o encontro, correto?
Certíssimo. Mas vejamos por uma outra ótica. Quem foi afoito demais para não ver que o chão estava esburacado? Foi você quem desviou sua atenção e cuidado e atrasou. Você assinou seu atraso. Nosso roteiro é mutável, mas dificilmente é escrito dentro da velocidade do pensamento. Pois há intempéries. Pois são muitos roteiros cruzados, cada um escreve seu próprio roteiro. Nunca são escritos em conjunto, eles podem se assemelhar e a isso damos o nome de coincidências.
Coincidências são roteiros que se cruzam, o que não é difícil de ocorrer. Quantas pessoas escrevem que irão pegar o metrô às 8h da manhã, ou que estarão presas no engarrafamento às 20h. Fazer aula, ir ao supermercado, tirar a carteira de motorista, ir ao trabalho, comprar jornal, estádio de futebol, shopping, enfim, uma infinidade de opções. Coincidências, não destino.
Destino é nosso grande diretor. Mas você ainda acredita em destino?
Veja bem, não escrevemos que choveria hoje. Mas quando está sol e a água evapora e sobe, e se condensa e vira gotícula de água, chove. Nada é inventado, tudo é transformado, tudo faz parte do grande ciclo que nossa percepção limitada não enxerga. Destino é o nome que damos a tudo aquilo que foge do nosso controle. Quando os roteiros se cruzam sem você saber, como alguém que é atropelado na calçada esperando o ônibus chegar.
Nossa vida é nosso roteiro, nossa realidade é nosso picadeiro.

Às vezes somos palhaços. Tão tristes e tão felizes. Palhaços me dão certa melancolia. Parecem aquelas pessoas a beira da morte que fazem de tudo para amenizar a dor dos que ficam. Sorrisos falsos, situações esquisitas. A alegria mórbida. Alegria ilusória. Você nunca se sentiu assim. Quando no limiar da melancolia jogou suas expectativas sobre uma pessoa qualquer? Quando planejou tudo sem saber se ela estava de acordo? Ilusão de felicidade. Deleite instantâneo, feroz e passageiro. Você já foi um palhaço, sim. Já tentou esquecer alguém com sorrisos falsos e choro abafado.
Às vezes brincamos com fogo, mas quem não brinca? Quem não gosta de sentir perigo? Na maioria das vezes acabamos queimados, mas quem se importa?
Às vezes somos malabaristas, dando um jeitinho qualquer de equilibrar nossos sentimentos. Nos ponderamos, nos apossamos da calma ou da atitude que nos falta. Como bom malabarista, deixamos cair muitas vezes nossas claves no chão, mas vamos equilibrando aos poucos com tranqüilidade, serenidade e muito trabalho.
Nas horas mais incertas, mais perigosas, somos como trapezistas, temos muita força para agüentar a pressão, a incerteza, a agonia de horas difíceis, e a flexibilidade de transformar tudo aquilo em boas atitudes, em bons resultados. Às vezes nos apegamos ao tecido sufocante que se torna nosso único apoio, mas temos de ser flexíveis, pois você não pode soltá-lo, senão você cai, mas não agarre com tanta força, senão ele não te suporta.
Sim, somos todos circenses, todos teatrais. Talvez a coisa mais sincera que tenham inventado são as peças circenses.
Não se preocupe em cair, em desequilibrar, tudo isso faz parte do espetáculo.
Mas como eu disse, não somos os únicos artistas, não temos um único roteiro, não seguimos uma seqüência lógica. Todos verão seus ensaios, o espetáculo da sua vida serão seus ensaios. Não há perfeição, pois não há beleza na perfeição, pois a perfeição também limita.
Tudo é mutável, mas uma coisa é certa, você chegará a todos esses estágios citados, é uma questão de tempo.
O espetáculo é constante, então aproveite para cair e levantar e cair e levantar, porque, na realidade, todos fazem isso, até os mais reservados. Mas não se esqueça, você pode mudar de cenário quando quiser, de personagem quando quiser, mas a cortina só se fecha uma vez.

18 de set. de 2007

Adeus Estrada de Tijolos Amarelos

Tudo parecia possível enquanto eu estava no lugar certo.
Rumávamos na direção da felicidade a passos largos.
Seu sorriso verdadeiro, sua jaqueta de malha preta, sua calça jeans descolada, seu cabelo penteado.
Não precisou esticar a mão para que eu saísse do abismo, apenas parou do meu lado e disse:
- Oi.
Pronto. Era melhor que um grito, era melhor que um empurrãozinho, era melhor que uma mão esticada.Só isso, e caminhamos.
A cada passo nosso, compassado e atencioso, deixávamos para trás o cheiro ácido de enxofre e a malevolência de dias frios, preguiçosos e depressivos.
A cada passo nosso era uma pedra a menos na minha parede feita de más influências, maus pensamentos e maus sentimentos. As pedras de frustrações, decepções, alarmes falsos e falsas promessas.
As pedras iam caindo uma a uma a medida que deixávamos para trás e rumávamos lado a lado e a cada pedra que caía, um tijolo era colocado magicamente à nossa frente.
As pedras de tristezas se transformavam em tijolos de alegrias, as pedras de lágrimas se transformavam em tijolos de sorrisos, e assim cada sentimento ruim que sumia um tijolo amarelo aparecia, deixando com que nós continuássemos a trilhar aquela estrada mágica.
Não ousava olhar para trás. Olhar para trás seria como aproximar a quimera de que muito temia. Era afrouxar o cinto diante do acidente certo. Era ignorar a máscara de oxigênio em um avião em queda livre. Olhar para trás seria dizer adeus a tudo de bom que estava acontecendo naquele dia em que transformava pesadelos em sonhos, utopia em verdade.
Então não olhei para trás, nem olhei para os lados. Via apenas você, e via minha estrada sendo feita passo a passo.
Não havia sol, mas quem precisa de sol quando tem alguém para aquecer? E quem precisa de sol exposto quando sabemos que ele está ali, apenas encoberto, mas está aquecendo e clareando como sempre.
Tudo estava bem, até que houve uma efusão, até que deixei escapar a grandiosidade dos meus pensamentos reprimidos, onde expus o por que da magnificência dos meus atos.
Então percebi que não foi apenas o meu verdadeiro pensamento que eclodiu. Minha verdade expôs sua verdade. Nossas máscaras caíram, nossos demônios voltaram a sorrir.
Nossos sentimentos não eram contrários, mas distintos de importância e elevação. Por conta disso, sua supremacia ficou evidente, sua voz desdenhosa exprimia seus valores e sua paciência exauriu. Seu jeito sagaz e desembaraçado deu lugar a saliência, arrogância, desprezo, proveniente da desafetação gradual e completa.
Isso não me faz falta mais.
Pela primeira vez olhei para os lados.
Notei outras pessoas que aos trancos e barrancos, tropeços e deslizes davam pequenos passos nas suas respectivas estradas.
Haviam várias estradas ao meu lado, cada uma com uma cor diferente.
Eu fiquei parado muito tempo no mesmo lugar com a estrada de tijolos amarelos. Não era mais o amarelo vivo de quando estava acompanhado. Era opaco, sujo, velho, embolorado. E por mais uma vez eu gritei, e te chamei, você havia partido.
Joguei um pouco de luz na sua estrada e ela fez uma curva sinuosa do local em que estávamos e por mais que eu me esforçava para ficar paralelo eu não conseguia. Até porque você estava muito distante de mim. Meus tijolos eram fracos, muitas vezes vinham quebrados e minhas pedras que ficavam atrás quebravam em pedaços cada vez menores.
Parei.
Havia sol, mas nem ele me animava ou me aquecia, pelo contrário, eu sonhava mesmo com aquele dia sem sol.
As pessoas que passavam perto da minha estrada jogavam pedras e recebia uma saraivada de impropérios.
O júbilo sumira.
A ceifa farta, o mau tempo fez questão de estragar.
A estrada de tijolos amarelos enegreceu como uma mão de betume pesado.
Queria me levantar, mas meu peso duplicara. Haviam lastros em minhas pernas e grilhões em meus pulsos. Estava cansado, faminto, era um maltrapilho, um morto com vontades mundanas, apenas isso.
Estava em um mundo além dos meus piores pesadelos. Um mundo dominado por parvos estranhos, cujas excentricidades eram demasiadamente abusivas.
Você se foi, me deixou aqui, sozinho. Roubou meu relicário, roubou minha alma, roubou minha vida. Antes tirava as pedras, hoje elas estão me soterrando.
Algumas pessoas me convidavam a andar lado a lado com elas. Mas não eram elas quem eu queria, nenhuma delas aliás. Eu fechava os olhos para elas.
Ninguém é insubstituível, eu sei, mas naquele momento parecia ser.
Fiquei parado.
Algumas plantas começaram a crescer de tanto tempo que eu perdi. Algumas pessoas passavam e não me atacavam mais, eram até gentis. Parecia que as coisas começavam a melhorar com a luz do sol, mas a noite era árdua, e a escuridão não poupava esforços para lembrar que estava fadado. Então percebi, na penumbra da minha desgraça, juntando os pequenos esboços de felicidade com as freqüentes escapadas, a minha prospecção de alegria foi cancelada. Havia lacunas, e não era preciso ser Édipo para decifrar o que era óbvio.
Eu estava na estrada de tijolos amarelos e minha estrada foi uma pequena ponte para você. Voltei um pouco em meu caminho, e com a luz do sol vi sua estrada ao lado da minha. Mas sempre há um outro lado. E havia uma terceira estrada que segue a sua até onde minha visão alcança.
Parei de fazer a curva. Parei de virar, queria seguir reto, não haviam mais tijolos amarelos, pois a mágica tinha terminado. Percebi que seu coração aventureiro não gostara de andar em linha reta. Haviam subidas e descidas, haviam muitas estradas cruzadas. Então percebi que houvera isso na minha também. Eu também era um aventureiro, também cruzava algumas estradas e o pior, transformei muitas estradas amarelas em caminhos escuros. Todas as estradas eram assim, multicoloridas. Não haviam estradas monocromáticas.
Resolvi aceitar os fatos. Resolvi andar. Minha estrada não era mais de tijolos amarelos. Era fria, áspera, não exalava cheiro nenhum. Ao invés de deixar as pedras caírem, peguei uma a uma, transformei-as em piso, em chão, não haviam ladrilhos de brilhante, não havia vegetação agradável em volta, não havia luz. Era um caminho frívolo, sim, mas eficaz.
Certa vez te vi, ao longe, é verdade, parecia feliz, talvez um diferente corte de cabelo, mas aquele sorriso era o mesmo, peralta e inocente, parei por alguns instantes, mas foram apenas alguns instantes. A estrada me transformara. Era inóspito, sim, talvez até inexpressivo. Mas era eficaz. Me tornei eficaz. Sem grandes expectativas, sem grandes exageros, sem grandes conquistas, sem grandes acontecimentos. A cor da minha estrada oscilava, mas dentro de uma margem de segurança. Eu a controlava como quem controla um carro, sempre me mantendo ao centro, dando total sentido a razão. Meu coração não me trairia mais. Assim está decidido, assim está feito.
Adeus estrada de tijolos amarelos. Por muitas vezes os tijolos amarelos se confundiram com a cor do céu ensolarado no nascer do dia, e cegava até o entardecer. E assim sucessivamente. Eu não reparava na verdade das outras horas, das outras posições solares no decorrer do dia, nem com a escuridão que expandiria a percepção do mais disperso. Eu via apenas o nascer e o pôr-do-sol, que não deixava a estrada demarcar o horizonte, fazendo tudo parecer eterno. Eu via apenas o que queria ver.
Mas ao menos vi a estrada de tijolos amarelos. Há pessoas que passam a vida sem nunca ter visto, há pessoas que sonham em vê-la e há pessoas como eu, que a viram, mas certamente não mais a verá novamente. E mesmo que a veja, hesitará em entrar.
Adeus estrada de tijolos amarelos.

11 de set. de 2007

Portas Abertas

Fecharam a porta da minha sacristia.
Estou na penumbra da minha mente onde as paredes possuem lodo que resultou de cada mentira contada e de cada situação desprovida de minhas idéias.
Minhas entranhas parecem querer sair do meu corpo, eu quero vomitá-las para quem sabe melhorar, quem sabe não enjoar. Mas penso nas substâncias necessárias ao meu corpo, que certamente virão com outra refeição, mas não serão as mesmas substâncias. Vomitarei tudo sim, inclusive o que não quero vomitar.
Fecharam as portas do meu calabouço.
E há uma fresta por onde entra um feixe de luz que teima em cair bem na minha retina, eu não quero enxergar, eu não quero saber que há algo melhor lá fora. Me acostumei com o mau cheiro, com as paredes pegajosas, com meu corpo sujo e fétido, com minha alma entregue aos lobos famintos que me esperam no outro canto da porta.
Estou me escondendo.
Não sei por que estou me escondendo, não sei por que estão me procurando, mas sinto a respiração insaciável do meu caçador enfurecido, com seu olhar penetrante e bestificado querendo me provar por A + B que serei sua vítima.
Oh! Caçador insaciável, paciente e pontual. Estou na mira do seu rifle há tempos e ele espera o momento certo, ele quer mirar nos meus olhos, olhando para ele, buscando a face terna e confortável da morte, sua paciência aumenta sua facilidade. Ele espera o meu pedido e pouco a pouco vou me rendendo. Ele espera que eu acene e pouco a pouco eu ergo os braços.
De tempos em tempos abrem as portas, mas a minha inóspita acolhida é sempre mal vista e acabo sempre no meu fastio deserto de areia, boca molestada pela estiagem, olhos cansados e castigados pelo sol a pino impiedoso e sádico que queima a pele branca, e ludibria a mente sensata.
Quem disse que eu queria vencer? Quem disse? Quem falou que queria ser o primeiro esperma? Para que vencemos no início? Para sofrermos depois?
Os zombeteiros ensurdecem meus ouvidos com risadas espessas e zunidos imperceptíveis que vão irritando meus nervos e aflorando minha ira.
A felicidade é invejada. Invejo-lhe no mais profundo âmago, no cerne, na essência. A inveja corrobora minha vontade de sair.
Então abro as portas, olho em seus olhos, pisco com um misto de lascívia e chacota, seus dedos trêmulos hesita perplexo com minha capacidade de ressurreição e quando tu titubeastes pensando onde errou, eu fugi.
E corri, corri até minhas pernas queimarem de cansaço e falta de costume. E chorei, chorei até secarem a fonte de tristeza e infelicidade que reinava em mim, que pairava sobre minha cabeça. E meus pulmões não agüentavam mais receber tanto oxigênio, e meu coração não agüentava mais bombear tão rápido. E com medo de que a epopéia vira um capítulo sem estilo, eu paro. Me viro, afônico pelo medo, atônito pela coragem.
Seus olhos pareciam me consumir. Eu fugi exatamente para onde eu não deveria. Cai na toca do lobo, na lareira pré-aquecida. Sinto-me anestesiado. Sai do medo da incerteza para encarar o medo da certeza. Meu inimigo ilusório agora é real. Meu sofrimento duplica e minhas dúvidas são quadruplicadas. Penso ser um erro ter tentado. Meio ao lodo, à sujeira, ao inferno, me senti aquecido. Agora estou no meu primeiro dia de aula com crianças me olhando, professores me fitando fingindo ser meus melhores amigos, meus maiores aliados, tornando-se meus piores inimigos. Corri em círculos retornando ao ponto de partida, como um circuito, um labirinto. Ele também se surpreendeu com a facilidade, como o verme que cai na boca no passarinho.
Não havia escapatória a não ser que houvesse chuva. E não choveu.
Estava eu preso as pestes e bestas da minha fecunda tragédia. Eu germinei meu fim. Estava certo de que havia errado.
Então eu aceitei o final da história como mero observador. E pela pequena fresta entre as grades e entre as insaciáveis picadas com espinhos venenosos, eu observei e me acostumei novamente com minha realidade imbecil e insuscetível.
Então açoitei com os mesmo espinhos o invólucro que cobria meu corpo e corri novamente, sem perseguidores.
Arrefeceu a febre. Tranqüilizou a lamúria. Inquietou a tristeza. Escarneceu os problemas. Estava incólume, pela primeira vez.
Corri minha estrada. Perdi meu medo. Abri minha porta, novamente.
Abri um sorriso, respirei oxigênio, cai no mar, comi frutas frescas.
A cada porta que eu via fechada, escancarava.
Mas o mais importante. Eu tenho as minhas portas abertas. O lodo se transformou em uma pintura bonita e acolhedora. O aroma era agradável. O abafado se tornou fresco.
O maior problema agora era o tempero, pois às vezes de tão insosso, acabamos exagerando no sal.
Questão de gosto, tempo de costume e auto-controle.

21 de ago. de 2007

Ostracismo Sentimental



Não, eu não quero ser freelance.
Não quero ser descartável.
Não quero ser necessário.
Quero ser indispensável.

Não, chega de ser freelance.
Chega de ser pontual e sem responsabilidade.
Chega de poder aceitar ou rejeitar quando se quer.
Quero ser fixo.
Quero criar intimidade.
Quero criar expectativas.
Quero fazer parte da sua vida.
Chega de ser diversão de final de semana.
Chega de ser solução para carência casual.
Chega de ser moda ou temporada.
Quero mais.

Não, não vou mais ser freelance.
Quero alguém que goste dos meus serviços.
Que queira sempre meus serviços.
Que sorria com meu sucesso no trabalho.
Que puxe a orelha nos meus fracassos.
Freelance não tem Feedback.
Ele simplesmente não é chamado novamente.
Freelance é taxista.
Fixo é aquisição de bem.
Não precisamos assinar a CLT de pronto.
Podemos ter um tempo de experiência.
Sei que faço bem feito.
Sei que não deixo a desejar.
Às vezes posso até pecar no excesso, mas nunca na omissão.

Não, nunca mais freelance.
Hoje quero ser fixo ou nada mais.
Podemos fazer um estágio, mas muito bem remunerado.
E se não der certo, rompemos o contrato.
Mas, por favor, não me pague no final da noite.
Não esqueça meu aniversário.
Não me fale "até a próxima".
Quero mais que isso.
Quero raízes.
E hoje minhas raízes são as solas do sapato.
Quero somatória.
E hoje sou um conjunto vazio.
Minha independência é a dependência do mundo todo.

Não quero ser freelance.
Quero décimo terceiro.
Quero participação nos lucros.
Não quero ser irrelevante.
Quero ser elevado.
Quero todo ano meu abono sentimental.

Não quero mais ser freelance.
Quero ser promovido.
Disse isso ao contratante.
Disse à consultora Afrodite.
Nunca cheguei a ser fixo.
Hoje não sou mais freelance.
Acabei desempregado.
Alguém pegou minha vaga.
Melhor sorte na próxima.

17 de ago. de 2007

10 Dias de Espera

Acordo cansado. Fico em prantos. Caio no sono. Acordo cansado. Fico em prantos. Caio no sono. Acordo cansado. Trabalhei forçado. Estudei desgostoso. Fico em prantos. Caio no sono. Acordei cansado. Esqueci de escovar os dentes. Esqueci de lavar o cabelo. Acordei cansado. Esqueci de tomar o café. Esqueci o ferro ligado. Esqueci de lavar a roupa. Esqueci de entregar o relatório. Acordei cansado. Acordei com sono. Esqueci de colocar a gravata. Estou nu dentro de casa. Estou cansado. O cansaço me cansa. Estou pensando. Estou lembrando. Acho incentivo. Acho insensato. Acho necessário. Ato falho. Não telefono. Fico em prantos. Caio no sono. Acordei cansado. Estou esquisito. Estou sem fome. Estou vendo que nada acontece aqui. Estou com calor. Estou com frio. Estou com a pressão baixa. Estou com a pressão alta. Estou com enjôos. Estou com ranço de melancolia. Estou olhando você me picando. Estou voltando ao normal. Estou torcendo que você erre a dose. Estou sonolento. Estou com as mãos sujas do dinheiro sujo. Aceno e te quero. Explico o caminho. Enxergo turvado. Acordo forçado. Durmo fácil. Acordo cedo. Perco o sono. Perco a vontade. Perco o equilíbrio. Acho incentivo. Acho insensato. Acho necessário. Ato falho. Não telefono. Choro em pranto. Caio no sono. Perco a hora. Vejo o atestado. Almoço fora. Engulo o choro. Entorpeço pensamentos. Entorpeço pensamentos. Mudo o foco. Saio da rotina. Encontro alguém. Faço o normal. Pago. Perco a vontade. Não acabo. Fico enojado. Perco o rumo. Peço desculpas. Vejo ao longe. Estou santificado. Estou mentindo. Estou pecando. Estou desistindo. Estou desacreditando. Estou indo embora. Sento acuado. Peço a primeira. Não surtiu efeito. Olho o relógio. Peço a segunda. Visão enturva. Chamo meu súdito. Vira meu guru. Ouço palavras. Desacredito. Perco a memória. Peço a terceira. Peço a quarta. Falo alto. Peço a quinta. Fico em prantos. Peço a sexta. Olho o teto. Desconheço. Lembro que esqueci de limpar. Estou fedendo. Não chegou mensagem. Sem ligação perdida. Jogo no chão. Vista girando. Não tenho foco. Não tenho estima. Não tenho ego. Hidrato. Desidrato. Hidrato. Estou nu em casa. Acho incentivo. Acho insensato. Acho necessário. Ato falho. Não telefono. Estou sem vontade. Fico em prantos. Caio no sono. Acordo cansado. Durmo de novo. Acordo cansado. Não levanto. Fiquo lembrando. Sorrio. Fico em prantos. Caio no sono. Acordo. Acho incentivo. Acho insensato. Acho necessário. Ato falho. Telefono. Não me atende. Lembro. Fico em prantos. Caio no sono. Acordo cansado. Trabalhei forçado. Estudei desgostoso. Fico em prantos. Caio no sono.

Recomendação: Esperança é a penúltima que morre. Depois vem você. Ótima semana para vocês também.

13 de ago. de 2007

Destino?

Não, eu não acredito em destino. Não acredito em deixar as coisas rolarem. Eu escrevo minha história e faço meus planos. Se eles dão certo ou não... outra conversa. Acho que quando você deixa as coisas acontecerem, fica parecendo aquelas pessoas à beira da morte, esperando o inevitável, prolongando o resultado certo. Não, não acredito que este seja meu destino. Meu destino é desacreditar no destino. É fazer com que o que eu fui destinado a fazer dê errado. Sim, eu faço o que eu quiser, eu sou meu dono, meu senhor. Destino é desculpa de fracassados. Eu procuro evitar o acaso e tratá-lo como uma variável. Poderia estar lá, mas estou aqui. Você poderia estar lá, mas está aqui. Já imaginaram quantas e quantas vezes você já trombou durante toda a sua vida com aquela pessoa que você julga especial? Talvez tenha cedido o lugar para que ela se sentasse, talvez tenham brigado por furar uma fila ou dar um "encontrão" no meio da rua. Variáveis. São tantas, até que um dia dá certo. E foram tantas tentativas erradas que um dia dá certo. Vocês se encontram e se curtem e depois... depois acaba. Até que você nota o número de vezes deu errado, será que era para realmente dar certo? Será que não demos murro em ponta de faca?
Aprendi algo muito importante nos últimos dias. Viver bem é ter a capacidade de ignorar o que não vale a pena e não vale a pena pensar em como deu errado, vale a pena lembrar de quando deu certo.

30 de jul. de 2007

Conseqüências

Por que não comparar a vida com uma colcha de retalhos?
Você dorme 8 horas por dias, trabalha mais 8h (em média, é claro), estuda mais 4h. Fica preso mais 2h no trânsito, resultado: sobram-lhe duas, apenas duas horas do seu dia em que você é apenas você, de você e para você.
Ah sim, sobram-lhe os finais de semana que você tem que dividir entre amigos, família e vertentes. Sim, temos que dividir, afinal, no final de semana você não trabalha 8h, mas prolonga sua soneca em 9h ou 10h, almoça calmamente, conversa, assiste um programa de televisão, vê um bom filme, vai a um bom cinema.
Uma vez me disseram: “Você fez parte da minha folga.” No momento pôde parecer frio, mas depois percebi qual o grau de importância que isso representa.
Vivemos de momentos, pequenos momentos na vida. Às vezes, uma tarde se torna eterna, de um surrealismo sublime, intenso, verdadeiro, não se sabe se aquela tarde acabará naquela tarde, não se sabe se aquela tarde trará noites, dias, viagens, férias, mas não reclame se não se tornar. Lembre-se daquela tarde. Em que tudo parecia possível, em que todas as questões eram decifradas, todos os erros eram concertados, em que tudo pelo que você brigava parecia valer a pena. Em que ninguém lhe incriminava, ninguém lhe prendia. Em que as possibilidades se abriam como flor na primavera, e você escolhia qual a melhor.
Aquela tarde acaba. Como a noite que vem em seguida. Como o dia que vem em seguida. E surge uma nova tarde. Talvez mais quente, talvez mais fria. Quem sabe?
E então você dorme mais 8 horas, e dirige por mais duas horas, e trabalha por mais oito horas e estuda por mais quatro horas, até que chega enfim às suas tão sagradas duas horas, onde você escolhe sua companhia, mas nem sempre a companhia te escolhe.
Pois é. Vivemos a conseqüência do ontem. A conseqüência do anteontem. Não temos algo imediato, não quando envolvemos outras pessoas de livre e espontânea vontade. Vomita porque escolheu beber. Sofre porque escolheu amar. Ama porque escolheu conhecer. Conheceu porque escolheu não ficar só. Ficou só porque escolheu amar demais.
Neste jogo que aquela tarde entramos, estamos jogando sem árbitro, jogando com regras distintas. Efêmero ou eterno? Não sei. Apenas sinto. Sinto que seria bom continuar. Mas se não continuar, pelo menos acabou no bom momento. Às vezes, momentos são como belas fotografias, você as olha, e se lembra, mesmo amareladas, de como foi bom este momento, de como foi intenso e eterno. Fotografias são eternas. Às vezes, o momento se prolonga, e se torna uma historia. E a historia às vezes não é tão boa, se prolonga demais e, aquele momento perfeito se torna pequeno, perto do imperceptível. E esse é o grande barato da tragicomédia das relações interpessoais. Não é quem, é quando. Eis a grande problemática.
E nós esperamos algo divino, o segundo sol, o alinhamento planetário, a vida após a morte, uma viagem extra-corpórea, o Armageddon. E não percebemos que a grande atração da vida está nas pequenas coisas. Nos nossos pequenos e eternos momentos. Naquela colcha de retalhos, retalhes de momentos, retalhos de sorrisos, retalhos de alegria, que teimamos em deixar no armário e só tirarmos em dias de frio, dias cinzentos e tristes, mas que deveríamos deixar na cama sempre, mesmo no calor, mesmo dobrados, mas sempre a vista, nos lembrando das coisas boas, pois assim esquecemos as más, nos lembrando da música, das frases ditas, dos sonhos combinados, das loucuras que nunca foram feitas, das promessas, muitas descabidas, poucas exercidas, mas por que não sonhar na vida? Ela é curta, talvez não de imediato para o jovem, mas curta para o velho. E jovens ficam velhos. Pelo menos deveriam ficar.
Mas nunca se esqueça de estender a colcha de retalhos. No final do dia, na hora de reflexão. Certamente um sorriso amarelo de saudade brotará em seu rosto, uma lágrima caíra e sempre ficaremos com a amarga sensação de que poderíamos ter feito diferente se algo tivesse sido feito, ou não feito. Mas o “se” não existe. Aliás, ele existe apenas para amenizar o resultado, para nos lembrar de como somos tolos, e são mais tolos aqueles que tentam mudar o inevitável, mesmo no imaginário. E viva o amor platônico, mesmo que por alguns segundos de um viés criativo.
As coisas que você vive agora, você escolheu ontem, mesmo sem saber, mesmo no imbróglio desapercebido de alguns segundos, ou na sabedoria chegada por horas incessantes de reflexão.
Conseqüências meu caro amigo. Conseqüências.

23 de jul. de 2007

Inveja Não Mata

Já notaram como o ser humano é demasiadamente controverso? Como prezamos a política da boa vizinhança e não economizamos palavras para descrever os defeitos das pessoas? Como nos esquecemos com facilidade das vitórias e recordamos apenas das derrotas? Como elegemos nossos líderes e apenas reclamamos deles? Como invejamos.
Sim, todo o ser humano é invejoso. Do mais alto ao mais baixo, do mais rico ao mais pobre. Há uma máxima que diz: “Há sempre um peixe maior”. É essa máxima que nos traz a inveja. E a inveja é benéfica, dependendo do ponto de vista, claro. Há pessoas que invejam um estilo simples de vida, outras que invejam uma vida luxuosa. Há pessoas que invejam algo pequeno, ou grande. Não importa. O que importa é que a inveja motiva. Na verdade todos os sentimentos nos geram motivação, amor, ódio, raiva, mágoa, mas a inveja, Ah!!! A inveja é o plus da motivação, é o barril de pólvora. É bem verdade que Platão assinalou com seu Mito da Caverna que a ignorância é uma bênção. E muitos são abençoados. Sem enxergar, não há cobiça. Se bem que até o cego cobiça a visão. Mas a inveja faz com que não cometamos um pecado essencial na nossa vida: Acomodação. No caso do ser humano, a falta de acomodação pode ser confundida com a não-satisfação. Com isso, casamentos são desfeitos, sociedades rompidas, acordos cancelados. O mundo inveja. O terceiro mundo inveja o primeiro. Você inveja o carro do seu vizinho. Inveja a mulher do amigo. A inveja gera a falta de valor de todo o resto.
Em um relacionamento há sempre dois integrantes (salvas exceções). Um que gosta menos e o outro que se dá mal. Casamentos duradouros dão certo porque fazem a combinação desses elementos e não questionam mais nada. A fórmula é mais ou menos esta:
Adaptação + Tempo + Boa Cia. - Inveja = Acomodação + Filhos (Bônus de preocupação e preenchimento de lacunas) = Casamento Perfeito.
O problema maior é a inveja. E ela se estende do primeiro dia ao último. Como não invejar o sexo casual e optar por apenas uma pessoa? Afinal ele não enjoa. Como não invejar um relacionamento estável ao invés de ter uma pessoa por dia? Afinal é como um livro de poesia, curto, bonito, mas são apenas algumas linhas.
A inveja é inevitável, assim como a satisfação. A acomodação é que faz com que façamos nossa escolha. Às vezes nos julgamos velhos demais para recomeçar, ou jovens demais para estacionar. E sabemos que o meio termo é tão difícil de se chegar. E não ouça quem lhe disser que o melhor é se arriscar, nem ouça quem disser que o melhor é manter. Ouça apenas a pessoa que mais lhe conhece. Você. Tudo parece pequeno quando há algo maior. E o que fazer com o tempo que nos é dado? Apenas aproveite.

10 de jul. de 2007

Somos Quem Você É


Eu tinha uns dois dias quando eles vieram.
Tendo me apunhalado no coração, eles dançaram de forma selvagem em volta do meu berço.

- "Impossível" - eu gritei, e voltei a dormir.

Mais uma vez, eu era Ícaro, olhando diretamente nos olhos do sol. Aproximei-me de uma nuvem recém-nascida e imergi prontamente dentro dela. A nuvem me abraçou enquanto eu confiantemente absorvia seu oxigênio, deixando sua brancura fluir pela minha cabeça e aprender todos os meus pensamentos. Mergulhado no êxtase, eu mal percebi o abraço se apertando a cada respiração minha, passando do suave ao violento. Paralisado, eu engasguei a medida que o ar se tornava um veneno pesado. Eu era uma mosca presa em uma planta carnívora, ouvi as batidas do coração da criatura que me comeu, uma batida onipresente, um hipnotizante super poderoso. Respirando meu último suspiro, reconheci nele o som da dança da morte da qual eu tinha escapado.
Estava de volta no meu berço, cercado por um silêncio absoluto que negava tudo o que tinha acontecido. Desacreditado, olhei para o meu peito e chorei, vendo uma chaga aberta. Como se famintos pelas minhas lágrimas, eles se aproximaram, emergindo das sombras.

- "Você acabou fugindo exatamente para onde nós nos escondemos". Não disse nada.

- "Você espera que nós fiquemos para sempre sem dentes, como nos livros infantis. Mas a infância acaba. E aí crescem nossos dentes".

Eles me colocaram em uma cela, no meio da qual cresceu um cardo. Seus espinhos eram tão leves que a cada respiração eles se soltavam e furavam minha pele. Eu não me atrevia a olhar para ele, com medo de que pudesse machucar meus olhos. Fiquei faminto por dias. Então, um dia, o cardo floresceu e um deles veio colher as sementes. Eu corri na sua direção e agarrei uma para comer.

- "Comida para o pensamento" - ele disse, e saiu.

A semente, ao invés de ir para o estômago, foi direto para meu cérebro. E começou a crescer, germinando não em brotos, mas em pensamentos. Uma rajada de pensamentos selvagens invadiu meu crânio, procriando-se ali loucamente, faminta por meu infante córtex. Logo meu reino estava conquistado e eu deitei derrotado no chão e chorei, vendo os invasores estuprando todas as minhas filhas, que eram então devoradas por seus bastardos recém-nascidos. Quando meu coração inchado estava preste a explodir, um deles entrou na cela, afastando as criaturas.

- "Você despreza os parasitas" - ele disse, segurando uma das sementes. - "Mas você os deixa sem escolha até se tornar um simbionte". Eu não disse nada. - "Você pode ir agora. O lugar não mais importa". Quando fiquei em pé e andei até a porta, uns últimos espinhos do cardo voaram e furaram minha pele.

Eu andei por uma estrada que passava por uma terra devastada. Pela estrada, havia postes de luz, e quando a noite chegou, centenas de mariposas vieram voar nos seus brilhos. Elas se agitavam nervosamente em volta dos postes, como se lutassem umas com as outras pela luz. Mas logo seus movimentos se harmonizaram, e elas giravam com felicidade em volta das lâmpadas, realizando suas danças de alegria. Eram crianças andando em carrosséis brilhantes, cujas músicas enchiam o lugar inteiro. De repente, acabando com a melodia, as luzes se apagaram, e as mariposas desnorteadas se espalharam caoticamente, ficando presas em teias de aranha. Eu, impotente, observava a estrada se tornar seus túmulos comuns e chorava por elas, pois elas nem sabiam por quem tinham sido comidas. O massacre mal tinha terminado e as luzes voltaram, atraindo centenas de outras mariposas. Eu joguei pedras nas lâmpadas para impedir o que estava por vir, mas meu braço estava muito fraco para quebrá-las.

- "Você chora pelas mariposas" - Eu ouvi por trás de mim - "Se elas não tivessem morrido, você choraria pelas aranhas famintas". Eu me virei e vi um deles, com seus olhos pretos refletindo meu ódio.- "Eu choro por ambas" – disse, e sai da estrada, enquanto cada passo meu a frente profanava a dignidade das assassinadas.

De repente, a história acaba.