
Eu sei que eles estão bem. Mesmo de longe, mesmo escondido, ainda vasculho, ainda tento manter contato.
Qual o tamanho dos seus sacrifícios? Qual o tamanho das suas escolhas? Qual o tamanho das suas responsabilidades? Qual o tamanho das suas expectativas? Qual o tamanho da sua culpa? Qual o tamanho da cruz que você escolheu carregar?
Sete anos e já tinha tanta responsabilidade, era quem cuidava dos irmãos menores, da comida, da louça, da roupa, da televisão. Não viu a infância passar, não viu a necessidade de brincar. Brincava entre os afazeres, brincava entre as responsabilidades de gente grande. Sete anos, apenas sete, e calculava os horários, e brincava com os irmãos menores, e lembrava-se do almoço, e corria para pegar a roupa quando começava a chover. Estava cansado. Por que tanta responsabilidade para um garoto que merecia apenas se preocupar em tirar boas notas e rir a toa? Pensava no pai, sentia falta da mãe, era o pai e a mãe dos irmãos. Na sua cabeça ecoava apenas uma palavra: culpado.
Cinqüenta e seis anos, a vida ensinou-a a ser amarga, guiava seus negócios com mãos de ferro, tinha tudo em suas mãos, sua palavra era lei. Não gostava de ser contrariada, humilhava quem não gostava, achava que isso era status e promoção, o respeito através do medo, assumiu os negócios do marido e após um câncer que o levou e cá está ela, fria, serena, vivendo para a empresa e para seu filho, mal sabia que depois de cinqüenta e quatro anos, a mesma vida que o traiu tempo atrás, e o trouxe ao auge, voltaria a puxar-lhe as pernas e a deixar de joelhos. Foi um erro, uma falha, uma escolha. Certas coisas nós nunca desejamos a ninguém, nem ela desejou, nem ele, nem eu, são fatos que apenas acontecem, mas que estão interligados, que estão conectados de um modo ou de outro. Não é coincidência, nem destino, é causalidade. A causa e o efeito.
Vinte e oito anos, dois turnos, plantões, contas vencendo, três filhos para sustentar, o cabelo impecável, a roupa de um branco exímio, maquiagem equivalente à seriedade da profissão. Nada era fácil, casou-se grávida contra a vontade dos pais, morou em um fundo de casa que chamava de lar, e realmente o era, a família era pobre, porém estruturada. Seu marido trabalhava como segurança particular de uma das maiores empresarias do ramo de hotelaria. Ela acabou o curso de enfermagem e entrou em um dos mais renomados hospitais, envelheceu ao longo dos anos, mas conseguia conciliar as tarefas de casa e o trabalho externo, era mãe atenciosa, dedicada, sempre preocupada com os filhos, buscava os melhores colégios que o dinheiro podia comprar. Depois de dois anos de casada, deu a luz a gêmeos, não estavam nos planos, alto custo, ajuda dos pais e amigos fizeram sua vida se tornar mais apertada, filhos custam caro, dão trabalho, sugam nosso sangue e não prezam nosso suor. Filhos, a felicidade mais particular dos pais, a que mais orgulha e a que menos valoriza. Às vezes cachorros são mais agradecidos que os filhos. Circunstâncias de toda uma vida Você trilha o caminho dos filhos, até que ele descarrila. E então você se pergunta: Qual o tamanho das suas expectativas?
Vinte e dois anos, apenas vinte e dois anos e dependia de tudo e de todos, tinha o movimento do dedo indicador e o cérebro funcionando. Era nada e ninguém, era um cérebro em funcionamento sem forças para se locomover. Não foi sua culpa, não foi seu erro. Foi uma fatalidade. Hoje pensa como ninguém em como uma fração de segundos pode mudar sua vida. Aos vinte tinha tudo, aos vinte e dois, apenas aguarda, aguarda a ordem divina, ou a piedade humana. Seus olhos limitados enxergavam apenas onde alcançavam, sem ajuda externa, não poderia fazer nada. A sonda o mantinha alimentado. Havia tubos em seu pescoço, sua cama era reclinável, seu dedo acoplado ao botão. Sua diversão era chamar as enfermeiras que estavam ficando cansadas de tanto alarme falso.
Trinta e cinco anos e soube crescer na profissão, uma profissão de risco, é claro, mas ainda sim, uma profissão que se tornou rentável. O terno preto, a camisa branca, os indispensáveis óculos escuros, que escondem os olhos atenciosos a cada segundo. Quando ficou desempregado a única possibilidade que apareceu era essa, segurança. Tinha um filho para criar, decidira casar-se com sua atual esposa. Era um pai de família, precisou afastar-se e esquecer os tempos de boemia e dedicar-se a trabalhar, e muito. Sua esposa o ensinou a priorizar os estudos dos filhos, assim, sempre que podia trabalhava em turnos dobrados para complementar renda. Em três anos recebeu a oportunidade de ser promovido. E a aceitou. Virou chefe de segurança. Da segurança particular de uma das mais renomadas empresarias do ramo de hotelaria do país. Sim, é o pai de três filhos, sendo dois gêmeos que chegaram sem planejamento. A vinda dos gêmeos certamente foi uma motivação a mais para seu sucesso profissional. Era preciso ganhar mais. Trabalhou dobrado e dedicado, chamou a atenção da chefia, e na primeira oportunidade abraçou-a e cresceu. Foi seu primeiro grande salto na vida e o início da sua desgraça. Talvez conseguisse sustentar a família com um pouco menos, mas ganhava mais, bonificações, décimo terceiro, vendia as férias, horas extras.
Sete anos e quantas festas perdidas? Quantos “Dia dos Pais” e “Dia das Mães” sem representantes? Quantos natais com os vizinhos? E nesse em especial, quanta amargura. Nesse final de ano, passaria junto com sua mãe, no hospital, pois não tinha mais ninguém para a passagem. Seus vizinhos, parceiros de quase todos os anos, iriam viajar. Teria de passar a virada vendo sua mãe trabalhar, na recepção de um hospital. Quanta tristeza um hospital. Pessoas morrendo, sofrendo, sangrando, gritando, dormindo. As pessoas na recepção de um hospital são tensas, ásperas, esperançosas ou desesperadas. Os olhares atentos a cada porta aberta, a cada passo do enfermeiro ou do médico. As noticias são boas ou ruins, as reações são tristes ou felizes, é uma incógnita, é como se estivessem à porta do paraíso, com um grande juiz acusando ou libertando, dando uma segunda chance ou delimitando o fim da linha. Hospitais o davam medo. Eram sempre brancos, como um ritual, como uma coisa nobre, como uma purificação, a falsa paz, a falsa esperança na cor que demonstrava vida. Foi naquela recepção que ele viu uma senhora sentada. Chorando. Sozinha na noite de natal. Não havia mais ninguém apenas aquela senhora e aquele garoto.
Cinqüenta e seis anos, mal sabia que enfrentaria depois de tanto tempo de vida, sua fase mais depressiva. Tomava remédios para dormir, para enxaqueca, vitaminas, anti-depressivos, controladores de hormônio, dentre outros. Enfrentou a morte de seu marido e novamente a morte bateu-lhe a porta. Estava sozinha. Enfrentava a situação de frente, como uma rocha. Mas naquele dia desmoronou. Era noite de natal, estava ela com seu filho debilitado e, em partes, a culpa era sua. Seu filho movida um dedo e piscava, essa era toda a sua mobilidade. Era um dejeto humano, um vegetal com pensamentos, via aquele rapaz alegre e sempre festivo piscar os olhos tristes depois de um ano em coma. Seu filho, seu legado, seu único herdeiro, estava piscando e pedindo para ser “desligado”. Seus olhos pediam socorro. Era insuportável não chorar a cada quinze minutos. Era impossível se acostumar com tamanho descaso da vida humana. Pensava como Deus podia ter esquecido do seu filho. Se perguntava: por que? Estava prestes a tomar medidas drásticas. Estava desesperada.
Vinte e oito anos. Há dois levava a casa nas costas. Estava descrente da vida, descrente das pessoas, descrente de tudo. Envelhecera muito nesses dois anos, emagrecera terrivelmente, trabalhava no hospital e não se cuidava, não comia direito, esquecia dos filhos, sabia que faltava atenção para com eles. Mas quem lhe dava atenção? Todos os dias acordava com metas a serem cumpridas, com horas extras que complementariam sua pequena renda. Brigava por bolsas de estudo nas escolas, na creche, não via uma luz no fim do túnel, não sabia como faria para manter a casa, as contas, os estudos, a comida, a vestimenta, o material, a condução, a saúde. Seu marido não havia só perdido o emprego, mas perdeu também a liberdade. Seu querido marido, amável, afável, pai atencioso, amoroso participativo, em um surto de burrice, um espasmo de estupidez, mudou sua vida. Ela o odeia. Foi o responsável pela degradação não de apenas uma vida, mas de sete, contando com a dele. Eram sete pessoas interligadas por um momento de fúria. Ela dorme quando chega em casa, ela toma tranqüilizantes algumas vezes por semana, se auto-medicava, congelou sua vida. Não havia mais silencio suficiente, não havia mais calma. Ela era estressada, se incomodava com tudo, com o lugar ocupado no ônibus, com o lado esquerdo da escada rolante ocupado, com pessoas conversando alto, com o trânsito, com o excesso de zelo nas outras funcionárias com os pacientes, com seus filhos chorando, com alguém lhe contando o dia. Era problemática, era perturbada, desgastada. Se irritava freqüentemente com um paciente que teimava em apertar o botão de avisa a cada cinco minutos: “Minha vontade é a de quebrar o seu dedo, e deixar só os suas pálpebras funcionando.” As vezes, pensava isso, as vezes falava isso. Depois tinha remorso, mas o remorso passava quando era novamente atrapalhada pelo botão apertado. Odiava-o, como odiava seu marido.
Vinte e dois anos e se lembrava dos seus vinte anos, seu aniversário, decidiu comemorar como nunca, viajaria para o exterior em dois dias, era a viagem da sua vida, sua despedida Exagerou demais na bebida, desmanchou de sua namorada e ficou com cinco garotas aquela noite. Dirigiu bêbado, mas bem devagar, a pista era pequena e a toda hora precisava concertar o carro na faixa correta. Parou no sinal vermelho, olhou para o espelho, limpou os olhos vermelhos para conter o sono, estava há dois quarteirões de casa. Andou calmamente, a 20km/h. Não notou que o sinal estava fechado, não notou que vinha um outro carro há 140km/h, não notou que estava sem o cinto de segurança. Foi um milagre ter se salvado. Acordou um ano depois, movia as pálpebras, e o dedo indicador da mão direita.
Trinta e cinco anos, preso, condenado, culpado, e réu confesso. Não havia desculpas. Era condenado por uma tentativa de assassinato, criminoso e fichado. Sofria na cadeia com os maus tratos dos outros presos, vivia no inferno, não tinha contato com sua família, não tinha amigos, não tinha esperança, sairia de lá sem rumo, sem projeção, sem recuperação. suas cartas não tinham resposta, suas visitas eram inexistentes, não tinha mais família, não tinha mais contato, não procurava a família nos dias em que podia. Tinha vergonha de ter mudado o rumo das coisas, de ter feito tamanha bobagem. Lembrava-se de tudo como se fosse ontem e orava todas as noites para que o tempo voltasse e ele pudesse mudar o passado. Um erro, um único erro e mudou sua vida. Havia sido acusado injustamente de furto pela dona da rede de hotéis que o empregara e em quem depositou sua confiança. Não havia mais nada a se fazer, não havia como provar sua inocência, foi humilhado perante todos, rebaixado, demitido: - “Nunca mais trabalhará na vida”. – ouvia todo o dia estas palavras que mudaram sua vida. Queria matá-la. Pensou que merecia. Bebeu aqueles dias, brigou com sua esposa, saiu de casa e três dias depois fez algo que mudaria sua vida. Retornou a casa daquela mulher, com arma em punho resolveu que, se fosse acusado, seria acusado com motivos. Faria sim um roubo. Na calada da noite, ele conhecia sua rotina, seus hábitos, sua segurança que, mesmo reforçada, tinha falhas que ele conhecia. Foi um sucesso. Colocou umas pratarias no carro, algo que parecia ter muito valor, mas entrou no carro, e acelerou muito, pois a polícia já havia sido chamada. Cem, cento e dez, cento e vinte, cento e trinta, cento e quarenta quilômetros por hora. Até que o velocímetro ficou zerado. Sim, bateu em um carro, na lateral do motorista. Na hora tudo escureceu. Foi preso, dessa vez por homicídio.
Sete anos e uma única palavra quando saiu de um dos quartos: - Pronto. – disse o garoto àquela velha senhora – Agora tenho que ir, minha mãe acabou o plantão.
Cinqüenta e seis anos, ela não chorava mais naquela sala de espera. Levantou-se calmamente. Foi para casa, sentou-se na sala com whisky na mão, os olhos marejados, esperava ansiosa o telefonema da morte de seu filho.
Vinte e oito anos, e todos os meses recebia, misteriosamente, cinco mil por mês, nunca se soube de quem, e ela nunca correu atrás para saber, a principio acreditou ser de seu marido, lícita ou ilicitamente, não importava, ela conseguiu, depois daquele natal, colocar as contas em dia, dar estudos a seus filhos, mas nunca perdoou seu marido, não o queria pela frente, não respondeu suas cartas e para seus filhos, ele havia os deixado.
Vinte e dois anos, abriu os olhos, no teto pendurado, um código que poderia fazer com as mãos, o velho código Morse, e assim ele descreveu cinco letras: -- --- .-. - .
Trinta e cinco anos, recebeu apenas uma visita de sua esposa, ela estaria se mudando, levando os filhos, e queria que ele sumisse, nunca mais aparecesse. Agradeceu os cinco mil mensais que ele estava o enviando. Ele sabia que era obra da sua ex-patroa. Ela também se sentia culpada. Ele aceitou. Nunca mais viu os filhos, nem a esposa. Ficou com seu nome, seu rancor, sua estupidez, sua culpa. Qual o tamanho da sua culpa?
Sete anos, ele mal sabe o que fez, mas fez, ele saberá, aos sete anos perdeu a inocência ao desligar aquele aparelho. Aquela mulher ficara realmente feliz quando isso foi feito. E ela cumpriu o trato dando-lhe a mesada que prometeu. Ele guardou segredo. Para sempre. Qual o tamanho das suas responsabilidades? Qual o tamanho dos seus sacrifícios?
Cinqüenta e seis anos, uma medida drástica, um segredo inconfessável. Morreria com a culpa, mas ela fez sua escolha. Qual o tamanho das suas escolhas?
Vinte e oito anos, e nunca desvendou para o marido a mensagem que tinha no celular que o mesmo esqueceu no dia do acidente. Era de sua ex-patroa e dizia: “Desculpa, venha ao escritório para conversarmos e chegarmos a um acordo, tudo está esclarecido”. Ela nunca falou, pois não mudaria nada. Suas expectativas foram supridas anos depois. Qual o tamanho das suas expectativas?
Eu sei que eles estão bem. Mesmo de longe, mesmo escondido, ainda vasculho, ainda tento manter contato.
Qual o tamanho da cruz que você escolheu carregar?
No fundo nossa vida é como a flor de lótus, você planta a semente em um pântano, em um lugar tenebroso, e tenta florescer da melhor maneira possível. No fundo do pântano você guarda seus segredos e lembra-se apenas da beleza da flor que há do lado de fora da água.
2 comentários:
Parabens pelo Texto, mto bom mesmo! Gostei do jeito que vc resolveu contar a história.
É cada um sabe o tamanho de sua cruz...
e aeee muleke..poeta heinn....belo texto..
abraçoss
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