20 de fev. de 2008

Corte Delicado

Depois de uma semana estafante, decidi não gastar o dinheiro que ganhei trabalhando a semana inteira. Decidi dormir cedo na sexta-feira, o cansaço veio a galope, os olhos pesados, apenas a luz da televisão quase inaudível e o som de carros e sirenes.
Estou sozinho em uma cama de casal. Sei que meu cabelo está desarrumado, mas ninguém verá.
É sábado, uma feia, fria e nublada manhã de sábado. Ligo a televisão, desligo em seguida, nada presta. Tomo um bom copo de leite, pego uma faca e corto o pão que comeria, me cortei. Um corte fino e sem relevância. Quase imperceptível. Chupei o sangue que escorreu. Comi o pão. Tomei um bom banho. Correria se pudesse, mas a chuva não deixou.
Voltei para a cama de casal. Abri os braços e as pernas, fiquei imóvel. Imóvel até meus braços formigarem. E eu tentei me ouvir. Buscava um mundo novo em algum lugar. Ouvir minha alma. Minha consciência.
Olhei para o teto, um teto simples de cor branca. Mas o branco não é simples, engana-se quem pensa assim.
Olhe para algo branco e diga o que você vê. Branco? Não limite sua percepção. Olhe além. Pare de ver. Enxergue. Usufrua da sua imaginação, da fertilidade da sua mente. Se coloque no branco. Não tão simples assim.
Gostamos de ser ludibriados, o engodo faz parte da nossa natureza. A mentira necessária é mais prazerosa que a verdade justa.
O branco me remeteu a neve. Estava andando na neve. Você a vê? Ande, caminhe, pule, brinque, olhe os flocos de neve caindo sobre você. Você está sorrindo, está fazendo parte de algo especial. Percebi que estar com você é como caminhar na neve. Eu sempre me esforçava para caminhar, era prazeroso, novo, bonito, empolgante, recompensador. Mas com o tempo você vai se cansando. Cansa de se molhar quando a neve derrete sobre suas roupas, cansa de erguer as pernas se esforçando para ir mais rápido, cansa de respirar o ar gelado apenas para contemplar algo que começa a perder a graça. A neve é linda, mas é água em estado sólido. É uma escultura de gelo, tem data de validade, tem prazo de vida. A neve se torna um estorvo para sua locomoção, para suas atividades, ela fica cansativa e embaraçosa. Você não faz mais bonecos de neve, você não a contempla mais, você não olha com encanto os flocos de neve caindo ao seu redor. Você só encara a neve quando é necessário. E quando pode, você pega uma pá e retira a neve do seu caminho, você a evita, a rejeita, suplica por seu sumiço de livre e espontânea vontade. Eu era a sua neve. Que insistia em cair em sua cabeça e não ligava de ser sacudida. Que molhava a sua roupa para ser lembrada. Que fazia suas paisagens ficarem maravilhosas, mas você não olhava mais para fora. Você poderia ter falado: “Pare de cair”. Mas você não falou. Você ainda sorria quando a neve caía, quando via bonecos de neve e imagens dignas de um cartão postal. Você era capcioso e eu caí na sua armadilha. Sua boemia era minha degradação. Seu sorriso era minha perdição. Sua verdade era minha verdade.
Olhando para o branco eu entendi, nós não gostamos de ser simples. Nós queremos ser complexos. Nós não queremos ser compreendidos em cinco minutos, nós queremos ser surpreendidos a cada segundo. Nós não gostamos de ser exatos, nós queremos variáveis.
A diferença entre educação e grosseria não está em “o que se fala”, mas em “como se fala”. Mas a verdade é que a diferença entre a verdade e a mentira está em como se ouve. Dizer “eu te amo” a um apaixonado não é como dizer “eu te amo” a um affeur. O resto do rico é o tudo do miserável. Manter um relacionamento é como segurar um punhado de areia, se deixar muito aberto ele voa, se apertar demais ele escapa entre os dedos. Essas são nossas variáveis. Nosso cálculo matemático indecifrável. Nossa matéria odiada e indispensável. Os resultados nunca são iguais.
O que lhe custava ser honesto? O que lhe custava ter uma postura madura? O que lhe custava usar palavras simples?
Infelizmente não foi você quem errou. Eu fui direto, ansioso, impreciso. Não impressionei, não cerquei as possibilidades, não dei margem para discussão. Quando se defronta com a liberdade, entra-se em um jogo perdido.
Um laço de presente é apenas uma fita em linha reta. Você molda aos poucos e de forma branda, sem alardes, sem cobranças. Caso não de certo, pega a mesma fita, ou outra, e tente novamente, sem que o presente perceba, ele está lá, preso, mas belo e consentido da sua posição.
Peguei no sono.
Acordei horas mais tarde. Olhei para o lado, para as paredes, a televisão desligada, o armário, o criado-mudo, ouvi a chuva que continuava caindo e alguns raios que refletiam nas paredes, hesitei, mas decidi olhar para cima. Olhei para o branco do teto e percebi como nossa visão é limitada. Como nós preferimos ver aquilo que está a nossa frente, aquilo que queremos. O branco não existe. O branco é, na verdade, a união de todas as cores. Mas é mais fácil perceber o branco. Não enxergo mais o branco. Tudo é branco e nada é branco.
Me levantei mais calmo, mais relaxado. No decorrer do dia, sentia arder o pequeno corte, aquele corte de faca quando fui cortar o pão, pois não era como um corte grosseiro que faz alarde e nós estancamos. Era um fino corte, que aos poucos se torna irritavelmente inconveniente. A irritabilidade das coisas simples, pequenas e repetitivas.
Não foi um corte profundo, não foi um corte grave. Foi um corte delicado, mas um corte delicado sangra do mesmo jeito.

7 de fev. de 2008

O Tuareg

É estranha a sensação de solidão. Dor no peito, insônia, mau-humor, cansaço, pensamento longe, olhos caídos, vagos, como se uma lacuna estivesse lá para ser preenchida. E está. Ficamos frágeis perante nossa própria fraqueza. Não importa o quão duro, o quão autoritário, o quão totalitarista você possa parecer, seus demônios o enfraquecem, eles conhecem o seu tendão de Aquiles, conhecem o seu ponto de equilíbrio, eles enegrecem sua visão, quebram a luz do farol, queimam o mapa e te deixam a mercê de qualquer criatura que passe por lá.
Eu escolhi essa vida. Sacudindo a poeira e fugindo do calor da manhã, assim começo o dia. Sem alguém para dar bom dia. Só o sol brilhando incansavelmente, o céu azul, as constantes ondas de calor, a sede incessante, a amargura de não ter ninguém em volta. Eu escolhi essa vida. Abandonar a ignorância benévola. Dependurar nas imperfeições humanas e buscar respostas para perguntas clássicas e complexas. A hombridade de repudiar os quesitos básicos que faziam parte do meu mundo. Sucumbir a curiosidade que realmente mata.
É estranha a sensação de solidão. Parece que te vendam os olhos e rodam, rodam, rodam, rodam, rodam, e te soltam, e você vai tropeçando sem direção. Ouvindo vozes de todas as partes. Eles se divertem com sua queda, com a mistura de todos os seus sentidos ao mesmo tempo. Ou a falta deles. Você tenta se levantar, em vão.
Eu escolhi essa vida. Abandonar o velho mundo reprime ainda mais sentimentos ocultos, ejeta idéias constantes. Onde há areia, sonha-se por uma charneca. O constante vento forte o faz lembrar de como era bom o tempo em que as esperanças nunca se findavam e as dúvidas eram esquecidas depois de vagos complementos contrários de sua teoria. Se tivesse um copo, brindaria a minha felicidade perdida que troquei pela minha decepcionante realidade.
É estranha a sensação de solidão. Mais estranho é saber que quando você consegue se orientar, alguém te empurra. Os risos continuam, a tontura está quase diminuindo e então, te empurram. Você bate os joelhos, machuca os cotovelos, segura o choro, afinal, ninguém precisa saber da sua dor, seria tachado fraco, diriam que não saberia brincar. Portanto não tire a venda dos olhos, levante-se sozinho, pé ante pé, sua cabeça busca o labirinto, então sente uma mão nas suas costas, e lá está você novamente, no chão. A brincadeira começa a te cansar, não?
Eu escolhi essa vida. Viver de restos. Restos de vida, rastros de morte. A vida é longa para os acomodados e curta para os revolucionários. Normalmente os acomodados tendem a encurtar a vida dos revolucionários. Nós somos sempre excêntricos, quiméricos, extravagantes, visionários, sempre buscamos compreender o incompreensível. Por isso destoamos do coral, desalinhamos a manada. Enfrentamos as conseqüências das nossas virtudes, das nossas descobertas e dos nossos princípios. Princípios esses, impares, únicos, inexatos a compreensão do ser humano médio. Sensato e perigoso para o ser humano alto e fortalecido. A abertura de mentes requer o fechamento de portas. O isolamento trás a facilidade da percepção, mas o isolamento traz o isolamento, oras. Temos esta escolha cruel entre vivenciar a agradável companhia de alguém especial, mesmo com seus diferentes pontos de vista, ou buscar o aperfeiçoamento contínuo e viver no isolamento. Poucos escolhem essa minha vida. Eu escolhi. Escolhi ser o monstro que todos esperam que eu seja, para me tornar o herói das gerações futuras. Escolhi saber a verdade ao invés de me perder em mitos e mentiras, em fatos inexplicáveis. Sou um homem da ciência, em busca da sabedoria plena e assim, vivo na catarse. Esse deserto é meu purgatório, meu limbo. A repetição dos meus erros em busca dos meus acertos. É a variável dos meus cálculos exatos. A verdade que busca o céu, a redenção. Eu quero dividir por zero.
É estranha a sensação de solidão. Você corre contra todos aqueles que te chutam, empurram, riem da sua desgraça. Você corre, até suas juntas começarem a queimar, até você não agüentar mais, até sua respiração te trair e fazer você se cansar excessivamente e seus pulmões ficarem tão pesados que suas costas parecem estar servindo de transporte para um elefante inteiro. Então você pára, se reprime e pensa que a sua única tentativa foi a de parecer fazer parte do grupo que te repudiou de maneira tão grosseira e coercitiva. Por que sair do seu casulo? Por que quebrar a casca? Recolha seus braços entre os joelhos. Peça para ser diferente, ser diferente, sendo igual. Deixar de ser “o” para se tornar mais “um”. As lágrimas que correm revelam meu destino. A opção que eu tomei tão pequeno e que todos os dias me pergunto se foi a correta. Será tão importante assim se sobressair de alguma forma? Será que não temos que fazer parte do todo? Será mais importante minhas descobertas ou minhas raízes?
Eu escolhi essa vida. Escolhi atender as excentricidades da minha alma, ao alimento que minha percepção solicitava. Escolhi o refúgio da liberdade. A liberdade ilusória. A liberdade que aprisiona. É o êxtase excessivo que traz a dependência. Ser um Imashaghen, ou ser um dos livres, traz a vantagem da liberdade que transcende a capacidade das massas. Livres das provações, das formalidades, da ética, do liberalismo, da repressão, de Deus, do demônio, da igreja, da psicanálise. O acesso ao excesso é a base do regresso. A simplicidade é a chave para a liberdade total e completa. Evoluímos dos macacos ou regredimos deles? A tecnologia avança a passos largos, minutos são momentos, descobertas novas a cada dia. O mundo se tornou mais rápido. Você esperava pelo Natal e hoje mal vê ele passar. Quando acorda é hora de ir trabalhar. Não assimila nenhuma informação, pois elas variam na velocidade da luz. É capaz de falar com o mundo todo, mas incapaz de cumprimentar seu vizinho. Criamos máquinas para nos tornarmos velozes e estamos ficando com o tempo livre pela mão-de-obra que sobra aos montes. Enriquecemos os poucos e entorpecemos na idéia de que ficaremos tão ricos quanto os que nos empregam, é um ciclo vicioso, uma inverdade baseada na verdade absoluta mantida por séculos de que somos todos iguais. Mentira. Somos todos diferentes e não sabemos como conviver com tais diferenças. O mundo evolui para pior. Evolução, fracasso do século XX, estampado nas condições climáticas, nos avisos de catástrofes naturais. A chuva cai em demasia, a alimentação fica mais cara, a inflação reina, o colapso financeiro se aproxima. Os grandes impérios sentem o peso de serem grandes impérios. Os auto-sustentáveis descobrem que são fracos e dependentes. O efeito borboleta ganha vida, todos estamos interligados por algum motivo, alguma sensível linha que eclode o big bang particular, vivificando seu universo paralelo. A selva de pedra estampa com luzes em neon o cenário desértico da nossa vida. O povo esquecido por Deus, molestado pelos homens e indecifrável, emudecido com tanto a se falar. A ignorância é privilégio de muitos, fui amaldiçoado por pensar em demasia. Preso na minha liberdade. Eu escolhi ser um Tuareg, pois não seria um bom hipócrita.
É estranha a sensação de solidão, a sensação de dar boa noite sem resposta, mas é algo adaptável e suportável, e eu... bem... eu escolhi essa vida.