30 de out. de 2007

Casa de Campo


Voltei a minha casa de campo.
Abri a porta de madeira surrada pela chuva da noite anterior. Uma maçaneta enferrujada, que quase não se abria, forcei para entrar, mas consegui. O ranger da porta é de assustar, ainda capacitado pela corrente de vento forte e frio daquele dia e o barulho da garoa fina que pingava nas poças d´agua.
Minha velha casa de campo. Uma casinha pequena, casinha de solteiro. Guardava a melancolia dos dias gelados, ainda mais naquele fim de tarde de um dia nublado. Sem vizinhos, sem barulho, sem crianças na porta, sem televisão ou rádio, sem nada. O lugar mais parado da cidade mais parada desse mundo mais agitado. O refúgio dos desesperados por oxigênio, silêncio e paz. O leito dos moribundos.
Pisava com cuidado para não escorregar na lama que estava no chão, junto com a sujeira acumulada e o pó dos móveis. Da vontade de voltar para o carro e seguir tropeçando nos mesmos erros. Mas no fundo tudo o que precisamos é de um tempo recluso para melhorar. E é pra isso que servem as casas de campo, normalmente é uma casa pequena como a minha, com detalhes, pequenos detalhes que te lembrar sempre algo maior e especial. Como o taco solto do chão de madeira que se desprendeu quando comecei a tirar a lama. Da mesinha de centro com a marca do copo e de fogo da bituca de um cigarro distraído. Mas passamos o pano e a mancha sai, com dificuldade, mas sai.
A bituca já é mais complicada. Mas dei um jeito. Com muito esforço de alguns dias e evitando olhá-la, aos poucos ela sai. Pensei em queimar o móvel todo, mas é perigoso, poderia queimar a casa toda. Deixei a marca lá, com o tempo eu me acostumo e me esqueço dela.
Tirei o colchão para fora, para tomar um ar, mesmo com o tempo fechado, era preciso que ele perdesse o cheiro de mofo, e sentisse o ar fresco, muito fresco por sinal. Joguei fora a roupa de cama velha e do porta-malas do meu carro, trouxe tudo novo. Travesseiros, edredom, cobertor, fronhas, enfim, tudo o que é necessário para mudar a cara daquele lugar. Tirei o pó dos móveis, joguei fora as folhas de sulfite velhas que continham seu nome. As fotos dos retratos que se continuassem ali, agora seriam como adagas afiadas penetrando em cada pensamento e cada sentimento que eu me propus a ter sobre você.
Abria as janelas com medo de que caísse alguma gota da garoa fina que caía lá fora. Eram frestas, pequenas frestas por onde o ar circulava e eu podia ver o limitado horizonte e por onde saía o pó.
Lavei a louça que fora guardada a muito tempo. Notei os copos antigos, os talheres feitos de modo artesanal. Nada muito chique, apenas uma mobília simples, uma louça simples, para uma pessoa simples, em uma casa simples.
A simplicidade é estranha não?
Como é simples prometer e como é simples não cumprir.
Como é simples dizer e como é simples não agir.
Como é simples se decepcionar e como é simples ser infeliz.
Por isso sempre optamos pelo simples. Dá menos trabalho.
Como é simples ter acesso e não procurar.
Como é simples ter o número e não ligar.
Como é simples ter o poder e não aproveitar.
Como é simples ser feliz e desperdiçar.
Simplicidade relativa, instigante, engraçada.
Mas voltemos a casa. Poderia ter chamado alguém para limpá-la comigo. Mas não quero diarista. Tem coisas que você precisa encarar sozinho. Até porque os diaristas estão sempre atrás de um emprego fixo. Diaristas muitas vezes se esquecem de limpar a própria casa para limpar as outras. Quem me diz que não fui um diarista?
Certamente eu limpei a casa da qual fui expluso. Deixando-a limpa, perfumada, pronta para, cruelmente, receber alguém. Como não se decepcionar com isso? Nossa casa ao léu, e a casa onde você morava intacta. Por isso voltei, pedi um tempo, queria limpar minha casa. É preciso. Repensar conceitos, rever o que é ético. Limpar a casa. Fazer uma bela faxina. Ignorar o que não vale a pena. Guardar recordações boas, mas só algumas, porque recordações boas ocupam espaço e não queremos espaços ocupados se queremos mudanças. Então selecionei bem o que valia a pena.
Estou cansado. Mas ficou um ótimo trabalho, hora de tomar banho, tirar o resto de sujeiro que grudou ao corpo. Lavar bem os cabelos, esfregar o rosto, cuidar dos pés.
Vestir uma roupa confortável. Ligar o fogão, ferver a água, pegar sua xícara favorita, colocar os sachês. Consegue sentir o cheiro do chá se misturando com o aroma do lustra-móveis? Consegue sentir o cheiro de madeira perfumada? Sente o frio passando pelas meias no chão descalço? Isso. Peguei alguns biscoitos, esqueci o regime, a academia, a conversa non-grata, a fofoca, as lamentações, os chefes, os amigos, as notícias, o mundo. Sentei na cadeira que ficava ao lado da cama em frente a janela. Dá trabalho esquecer alguém, mas no final é tão bom saber que somos auto-suficientes. É tão bom ver a casa limpa.
É certo que ainda chove lá fora, mas aqui dentro está tudo bem. Para as goteiras tenho baldes. Para a chuva, janelas. Para o frio, edredom. Para o cansaço, uma cama. Para o sofrimento, um bom livro. E se o sofrimento apertar, trouxe um travesseiro extra.
Para isso que servem as casas de campo, isoladas do mundo. Uma hora a chuva pára, os animais saem dos esconderijos, os pássaros vem beber nas poças d´agua, os homens andam com seus cavalos. Mas ainda é frio. Vou acabar meu chá, ler mais um pouco do meu livro e pegar no sono. Amanhã parece que a frente fria continua. Mas o clima é tão imprevisível. Pelo menos minha casa está limpa e eu não preciso ir mais pra casa de ninguém.
Quem quiser, bata na porta.

2 de out. de 2007

Le Cirque de Ma Vie

Nascemos de uma mistura, a mistura de duas grandes apresentações, de duas peças semi-acabadas.
Os coreógrafos me deram um nome. Bonito por sinal, mas todos aprenderam que não se pode levar muito em conta o nome de uma peça, pois, mesmo que nós tentemos mostrar algumas situações a serem seguidas, nunca sabemos como ela irá se desenhar.
Eis a peça da minha vida. Meus pais, coreógrafos, tentam nos mostrar uma certa lógica, uma experiência de quem já caiu muito, mas já deu muitas alegrias, muitas demonstrações de força, de habilidade e de coragem. Mesmo assim, a teoria é diferente da prática. Mesmo que os movimentos nos sejam mostrados, nós olhamos com certa desconfiança e tentamos ultrapassar os limites que nos são impostos. Os coreógrafos sempre querem nosso bem, nos dão tarefas um pouco mais fáceis de serem executadas. Estão sempre preocupados com que mostremos muita beleza, mas em primeiro plano, preocupam-se com nossa segurança.
Verdade seja dita, se nós fizéssemos apenas o que mandassem nossos coreógrafos, nosso show seria até belo, digno de ser revisto, mas seria limitado. Nós nunca saberíamos nossa verdadeira capacidade. Só conhecemos o nosso limite quando o ultrapassamos. Quando a margem nos é imposta. Quando o bolo queima, quando o freio não funciona, quando você cansa, quando o coração pára, quando o castelo de cartas cai, quando a cobaia morre.
Sacrifícios. A vida não seria vida sem sacrifícios, quando sacrificamos algo, queremos algo em troca, algo maior, algo desejado. Quantos sacrifícios nós fizemos ao longo da nossa jornada? Quantas vezes trocamos festas por estudos? Quantas vezes trocamos estudos por festas? Quantas opções, mas só podemos escolher uma. Apenas uma. E cada escolha gera uma conseqüência. Coisas da vida.
E o que é a vida senão uma grande peça teatral?
Tem um planeta inteiro como cenário. Onde todos formam a platéia, e todos estão no palco. Você é um ator-expectador. Controla sua vida, mas apenas a sua.
Um roteiro escrito a cada dia. Não, não é escrito em tempo real. Novamente digo, as opções de ontem são o roteiro de hoje.
O que? Duvida de mim?
Preste bem atenção. Posso comprovar. Quando você marca uma consulta hoje, para daqui 30 dias às 16h. Onde você estará daqui 30 dias às 16h? Se você marca de esperar uma pessoa dentro de 30 minutos, onde você estará daqui 30 minutos? Há variáveis, mas até as variáveis somos nós que escrevemos.
O que? Continua duvidando? Já sei, eis a sua pergunta. E se eu tropeçar e machucar minha perna daqui 15 minutos, posso me atrasar para o encontro, correto?
Certíssimo. Mas vejamos por uma outra ótica. Quem foi afoito demais para não ver que o chão estava esburacado? Foi você quem desviou sua atenção e cuidado e atrasou. Você assinou seu atraso. Nosso roteiro é mutável, mas dificilmente é escrito dentro da velocidade do pensamento. Pois há intempéries. Pois são muitos roteiros cruzados, cada um escreve seu próprio roteiro. Nunca são escritos em conjunto, eles podem se assemelhar e a isso damos o nome de coincidências.
Coincidências são roteiros que se cruzam, o que não é difícil de ocorrer. Quantas pessoas escrevem que irão pegar o metrô às 8h da manhã, ou que estarão presas no engarrafamento às 20h. Fazer aula, ir ao supermercado, tirar a carteira de motorista, ir ao trabalho, comprar jornal, estádio de futebol, shopping, enfim, uma infinidade de opções. Coincidências, não destino.
Destino é nosso grande diretor. Mas você ainda acredita em destino?
Veja bem, não escrevemos que choveria hoje. Mas quando está sol e a água evapora e sobe, e se condensa e vira gotícula de água, chove. Nada é inventado, tudo é transformado, tudo faz parte do grande ciclo que nossa percepção limitada não enxerga. Destino é o nome que damos a tudo aquilo que foge do nosso controle. Quando os roteiros se cruzam sem você saber, como alguém que é atropelado na calçada esperando o ônibus chegar.
Nossa vida é nosso roteiro, nossa realidade é nosso picadeiro.

Às vezes somos palhaços. Tão tristes e tão felizes. Palhaços me dão certa melancolia. Parecem aquelas pessoas a beira da morte que fazem de tudo para amenizar a dor dos que ficam. Sorrisos falsos, situações esquisitas. A alegria mórbida. Alegria ilusória. Você nunca se sentiu assim. Quando no limiar da melancolia jogou suas expectativas sobre uma pessoa qualquer? Quando planejou tudo sem saber se ela estava de acordo? Ilusão de felicidade. Deleite instantâneo, feroz e passageiro. Você já foi um palhaço, sim. Já tentou esquecer alguém com sorrisos falsos e choro abafado.
Às vezes brincamos com fogo, mas quem não brinca? Quem não gosta de sentir perigo? Na maioria das vezes acabamos queimados, mas quem se importa?
Às vezes somos malabaristas, dando um jeitinho qualquer de equilibrar nossos sentimentos. Nos ponderamos, nos apossamos da calma ou da atitude que nos falta. Como bom malabarista, deixamos cair muitas vezes nossas claves no chão, mas vamos equilibrando aos poucos com tranqüilidade, serenidade e muito trabalho.
Nas horas mais incertas, mais perigosas, somos como trapezistas, temos muita força para agüentar a pressão, a incerteza, a agonia de horas difíceis, e a flexibilidade de transformar tudo aquilo em boas atitudes, em bons resultados. Às vezes nos apegamos ao tecido sufocante que se torna nosso único apoio, mas temos de ser flexíveis, pois você não pode soltá-lo, senão você cai, mas não agarre com tanta força, senão ele não te suporta.
Sim, somos todos circenses, todos teatrais. Talvez a coisa mais sincera que tenham inventado são as peças circenses.
Não se preocupe em cair, em desequilibrar, tudo isso faz parte do espetáculo.
Mas como eu disse, não somos os únicos artistas, não temos um único roteiro, não seguimos uma seqüência lógica. Todos verão seus ensaios, o espetáculo da sua vida serão seus ensaios. Não há perfeição, pois não há beleza na perfeição, pois a perfeição também limita.
Tudo é mutável, mas uma coisa é certa, você chegará a todos esses estágios citados, é uma questão de tempo.
O espetáculo é constante, então aproveite para cair e levantar e cair e levantar, porque, na realidade, todos fazem isso, até os mais reservados. Mas não se esqueça, você pode mudar de cenário quando quiser, de personagem quando quiser, mas a cortina só se fecha uma vez.