
Voltei a minha casa de campo.
Abri a porta de madeira surrada pela chuva da noite anterior. Uma maçaneta enferrujada, que quase não se abria, forcei para entrar, mas consegui. O ranger da porta é de assustar, ainda capacitado pela corrente de vento forte e frio daquele dia e o barulho da garoa fina que pingava nas poças d´agua.
Minha velha casa de campo. Uma casinha pequena, casinha de solteiro. Guardava a melancolia dos dias gelados, ainda mais naquele fim de tarde de um dia nublado. Sem vizinhos, sem barulho, sem crianças na porta, sem televisão ou rádio, sem nada. O lugar mais parado da cidade mais parada desse mundo mais agitado. O refúgio dos desesperados por oxigênio, silêncio e paz. O leito dos moribundos.
Pisava com cuidado para não escorregar na lama que estava no chão, junto com a sujeira acumulada e o pó dos móveis. Da vontade de voltar para o carro e seguir tropeçando nos mesmos erros. Mas no fundo tudo o que precisamos é de um tempo recluso para melhorar. E é pra isso que servem as casas de campo, normalmente é uma casa pequena como a minha, com detalhes, pequenos detalhes que te lembrar sempre algo maior e especial. Como o taco solto do chão de madeira que se desprendeu quando comecei a tirar a lama. Da mesinha de centro com a marca do copo e de fogo da bituca de um cigarro distraído. Mas passamos o pano e a mancha sai, com dificuldade, mas sai.
A bituca já é mais complicada. Mas dei um jeito. Com muito esforço de alguns dias e evitando olhá-la, aos poucos ela sai. Pensei em queimar o móvel todo, mas é perigoso, poderia queimar a casa toda. Deixei a marca lá, com o tempo eu me acostumo e me esqueço dela.
Tirei o colchão para fora, para tomar um ar, mesmo com o tempo fechado, era preciso que ele perdesse o cheiro de mofo, e sentisse o ar fresco, muito fresco por sinal. Joguei fora a roupa de cama velha e do porta-malas do meu carro, trouxe tudo novo. Travesseiros, edredom, cobertor, fronhas, enfim, tudo o que é necessário para mudar a cara daquele lugar. Tirei o pó dos móveis, joguei fora as folhas de sulfite velhas que continham seu nome. As fotos dos retratos que se continuassem ali, agora seriam como adagas afiadas penetrando em cada pensamento e cada sentimento que eu me propus a ter sobre você.
Abria as janelas com medo de que caísse alguma gota da garoa fina que caía lá fora. Eram frestas, pequenas frestas por onde o ar circulava e eu podia ver o limitado horizonte e por onde saía o pó.
Lavei a louça que fora guardada a muito tempo. Notei os copos antigos, os talheres feitos de modo artesanal. Nada muito chique, apenas uma mobília simples, uma louça simples, para uma pessoa simples, em uma casa simples.
A simplicidade é estranha não?
Como é simples prometer e como é simples não cumprir.
Como é simples dizer e como é simples não agir.
Como é simples se decepcionar e como é simples ser infeliz.
Por isso sempre optamos pelo simples. Dá menos trabalho.
Como é simples ter acesso e não procurar.
Como é simples ter o número e não ligar.
Como é simples ter o poder e não aproveitar.
Como é simples ser feliz e desperdiçar.
Simplicidade relativa, instigante, engraçada.
Mas voltemos a casa. Poderia ter chamado alguém para limpá-la comigo. Mas não quero diarista. Tem coisas que você precisa encarar sozinho. Até porque os diaristas estão sempre atrás de um emprego fixo. Diaristas muitas vezes se esquecem de limpar a própria casa para limpar as outras. Quem me diz que não fui um diarista?
Certamente eu limpei a casa da qual fui expluso. Deixando-a limpa, perfumada, pronta para, cruelmente, receber alguém. Como não se decepcionar com isso? Nossa casa ao léu, e a casa onde você morava intacta. Por isso voltei, pedi um tempo, queria limpar minha casa. É preciso. Repensar conceitos, rever o que é ético. Limpar a casa. Fazer uma bela faxina. Ignorar o que não vale a pena. Guardar recordações boas, mas só algumas, porque recordações boas ocupam espaço e não queremos espaços ocupados se queremos mudanças. Então selecionei bem o que valia a pena.
Estou cansado. Mas ficou um ótimo trabalho, hora de tomar banho, tirar o resto de sujeiro que grudou ao corpo. Lavar bem os cabelos, esfregar o rosto, cuidar dos pés.
Vestir uma roupa confortável. Ligar o fogão, ferver a água, pegar sua xícara favorita, colocar os sachês. Consegue sentir o cheiro do chá se misturando com o aroma do lustra-móveis? Consegue sentir o cheiro de madeira perfumada? Sente o frio passando pelas meias no chão descalço? Isso. Peguei alguns biscoitos, esqueci o regime, a academia, a conversa non-grata, a fofoca, as lamentações, os chefes, os amigos, as notícias, o mundo. Sentei na cadeira que ficava ao lado da cama em frente a janela. Dá trabalho esquecer alguém, mas no final é tão bom saber que somos auto-suficientes. É tão bom ver a casa limpa.
É certo que ainda chove lá fora, mas aqui dentro está tudo bem. Para as goteiras tenho baldes. Para a chuva, janelas. Para o frio, edredom. Para o cansaço, uma cama. Para o sofrimento, um bom livro. E se o sofrimento apertar, trouxe um travesseiro extra.
Para isso que servem as casas de campo, isoladas do mundo. Uma hora a chuva pára, os animais saem dos esconderijos, os pássaros vem beber nas poças d´agua, os homens andam com seus cavalos. Mas ainda é frio. Vou acabar meu chá, ler mais um pouco do meu livro e pegar no sono. Amanhã parece que a frente fria continua. Mas o clima é tão imprevisível. Pelo menos minha casa está limpa e eu não preciso ir mais pra casa de ninguém.
Quem quiser, bata na porta.