18 de set. de 2007

Adeus Estrada de Tijolos Amarelos

Tudo parecia possível enquanto eu estava no lugar certo.
Rumávamos na direção da felicidade a passos largos.
Seu sorriso verdadeiro, sua jaqueta de malha preta, sua calça jeans descolada, seu cabelo penteado.
Não precisou esticar a mão para que eu saísse do abismo, apenas parou do meu lado e disse:
- Oi.
Pronto. Era melhor que um grito, era melhor que um empurrãozinho, era melhor que uma mão esticada.Só isso, e caminhamos.
A cada passo nosso, compassado e atencioso, deixávamos para trás o cheiro ácido de enxofre e a malevolência de dias frios, preguiçosos e depressivos.
A cada passo nosso era uma pedra a menos na minha parede feita de más influências, maus pensamentos e maus sentimentos. As pedras de frustrações, decepções, alarmes falsos e falsas promessas.
As pedras iam caindo uma a uma a medida que deixávamos para trás e rumávamos lado a lado e a cada pedra que caía, um tijolo era colocado magicamente à nossa frente.
As pedras de tristezas se transformavam em tijolos de alegrias, as pedras de lágrimas se transformavam em tijolos de sorrisos, e assim cada sentimento ruim que sumia um tijolo amarelo aparecia, deixando com que nós continuássemos a trilhar aquela estrada mágica.
Não ousava olhar para trás. Olhar para trás seria como aproximar a quimera de que muito temia. Era afrouxar o cinto diante do acidente certo. Era ignorar a máscara de oxigênio em um avião em queda livre. Olhar para trás seria dizer adeus a tudo de bom que estava acontecendo naquele dia em que transformava pesadelos em sonhos, utopia em verdade.
Então não olhei para trás, nem olhei para os lados. Via apenas você, e via minha estrada sendo feita passo a passo.
Não havia sol, mas quem precisa de sol quando tem alguém para aquecer? E quem precisa de sol exposto quando sabemos que ele está ali, apenas encoberto, mas está aquecendo e clareando como sempre.
Tudo estava bem, até que houve uma efusão, até que deixei escapar a grandiosidade dos meus pensamentos reprimidos, onde expus o por que da magnificência dos meus atos.
Então percebi que não foi apenas o meu verdadeiro pensamento que eclodiu. Minha verdade expôs sua verdade. Nossas máscaras caíram, nossos demônios voltaram a sorrir.
Nossos sentimentos não eram contrários, mas distintos de importância e elevação. Por conta disso, sua supremacia ficou evidente, sua voz desdenhosa exprimia seus valores e sua paciência exauriu. Seu jeito sagaz e desembaraçado deu lugar a saliência, arrogância, desprezo, proveniente da desafetação gradual e completa.
Isso não me faz falta mais.
Pela primeira vez olhei para os lados.
Notei outras pessoas que aos trancos e barrancos, tropeços e deslizes davam pequenos passos nas suas respectivas estradas.
Haviam várias estradas ao meu lado, cada uma com uma cor diferente.
Eu fiquei parado muito tempo no mesmo lugar com a estrada de tijolos amarelos. Não era mais o amarelo vivo de quando estava acompanhado. Era opaco, sujo, velho, embolorado. E por mais uma vez eu gritei, e te chamei, você havia partido.
Joguei um pouco de luz na sua estrada e ela fez uma curva sinuosa do local em que estávamos e por mais que eu me esforçava para ficar paralelo eu não conseguia. Até porque você estava muito distante de mim. Meus tijolos eram fracos, muitas vezes vinham quebrados e minhas pedras que ficavam atrás quebravam em pedaços cada vez menores.
Parei.
Havia sol, mas nem ele me animava ou me aquecia, pelo contrário, eu sonhava mesmo com aquele dia sem sol.
As pessoas que passavam perto da minha estrada jogavam pedras e recebia uma saraivada de impropérios.
O júbilo sumira.
A ceifa farta, o mau tempo fez questão de estragar.
A estrada de tijolos amarelos enegreceu como uma mão de betume pesado.
Queria me levantar, mas meu peso duplicara. Haviam lastros em minhas pernas e grilhões em meus pulsos. Estava cansado, faminto, era um maltrapilho, um morto com vontades mundanas, apenas isso.
Estava em um mundo além dos meus piores pesadelos. Um mundo dominado por parvos estranhos, cujas excentricidades eram demasiadamente abusivas.
Você se foi, me deixou aqui, sozinho. Roubou meu relicário, roubou minha alma, roubou minha vida. Antes tirava as pedras, hoje elas estão me soterrando.
Algumas pessoas me convidavam a andar lado a lado com elas. Mas não eram elas quem eu queria, nenhuma delas aliás. Eu fechava os olhos para elas.
Ninguém é insubstituível, eu sei, mas naquele momento parecia ser.
Fiquei parado.
Algumas plantas começaram a crescer de tanto tempo que eu perdi. Algumas pessoas passavam e não me atacavam mais, eram até gentis. Parecia que as coisas começavam a melhorar com a luz do sol, mas a noite era árdua, e a escuridão não poupava esforços para lembrar que estava fadado. Então percebi, na penumbra da minha desgraça, juntando os pequenos esboços de felicidade com as freqüentes escapadas, a minha prospecção de alegria foi cancelada. Havia lacunas, e não era preciso ser Édipo para decifrar o que era óbvio.
Eu estava na estrada de tijolos amarelos e minha estrada foi uma pequena ponte para você. Voltei um pouco em meu caminho, e com a luz do sol vi sua estrada ao lado da minha. Mas sempre há um outro lado. E havia uma terceira estrada que segue a sua até onde minha visão alcança.
Parei de fazer a curva. Parei de virar, queria seguir reto, não haviam mais tijolos amarelos, pois a mágica tinha terminado. Percebi que seu coração aventureiro não gostara de andar em linha reta. Haviam subidas e descidas, haviam muitas estradas cruzadas. Então percebi que houvera isso na minha também. Eu também era um aventureiro, também cruzava algumas estradas e o pior, transformei muitas estradas amarelas em caminhos escuros. Todas as estradas eram assim, multicoloridas. Não haviam estradas monocromáticas.
Resolvi aceitar os fatos. Resolvi andar. Minha estrada não era mais de tijolos amarelos. Era fria, áspera, não exalava cheiro nenhum. Ao invés de deixar as pedras caírem, peguei uma a uma, transformei-as em piso, em chão, não haviam ladrilhos de brilhante, não havia vegetação agradável em volta, não havia luz. Era um caminho frívolo, sim, mas eficaz.
Certa vez te vi, ao longe, é verdade, parecia feliz, talvez um diferente corte de cabelo, mas aquele sorriso era o mesmo, peralta e inocente, parei por alguns instantes, mas foram apenas alguns instantes. A estrada me transformara. Era inóspito, sim, talvez até inexpressivo. Mas era eficaz. Me tornei eficaz. Sem grandes expectativas, sem grandes exageros, sem grandes conquistas, sem grandes acontecimentos. A cor da minha estrada oscilava, mas dentro de uma margem de segurança. Eu a controlava como quem controla um carro, sempre me mantendo ao centro, dando total sentido a razão. Meu coração não me trairia mais. Assim está decidido, assim está feito.
Adeus estrada de tijolos amarelos. Por muitas vezes os tijolos amarelos se confundiram com a cor do céu ensolarado no nascer do dia, e cegava até o entardecer. E assim sucessivamente. Eu não reparava na verdade das outras horas, das outras posições solares no decorrer do dia, nem com a escuridão que expandiria a percepção do mais disperso. Eu via apenas o nascer e o pôr-do-sol, que não deixava a estrada demarcar o horizonte, fazendo tudo parecer eterno. Eu via apenas o que queria ver.
Mas ao menos vi a estrada de tijolos amarelos. Há pessoas que passam a vida sem nunca ter visto, há pessoas que sonham em vê-la e há pessoas como eu, que a viram, mas certamente não mais a verá novamente. E mesmo que a veja, hesitará em entrar.
Adeus estrada de tijolos amarelos.

11 de set. de 2007

Portas Abertas

Fecharam a porta da minha sacristia.
Estou na penumbra da minha mente onde as paredes possuem lodo que resultou de cada mentira contada e de cada situação desprovida de minhas idéias.
Minhas entranhas parecem querer sair do meu corpo, eu quero vomitá-las para quem sabe melhorar, quem sabe não enjoar. Mas penso nas substâncias necessárias ao meu corpo, que certamente virão com outra refeição, mas não serão as mesmas substâncias. Vomitarei tudo sim, inclusive o que não quero vomitar.
Fecharam as portas do meu calabouço.
E há uma fresta por onde entra um feixe de luz que teima em cair bem na minha retina, eu não quero enxergar, eu não quero saber que há algo melhor lá fora. Me acostumei com o mau cheiro, com as paredes pegajosas, com meu corpo sujo e fétido, com minha alma entregue aos lobos famintos que me esperam no outro canto da porta.
Estou me escondendo.
Não sei por que estou me escondendo, não sei por que estão me procurando, mas sinto a respiração insaciável do meu caçador enfurecido, com seu olhar penetrante e bestificado querendo me provar por A + B que serei sua vítima.
Oh! Caçador insaciável, paciente e pontual. Estou na mira do seu rifle há tempos e ele espera o momento certo, ele quer mirar nos meus olhos, olhando para ele, buscando a face terna e confortável da morte, sua paciência aumenta sua facilidade. Ele espera o meu pedido e pouco a pouco vou me rendendo. Ele espera que eu acene e pouco a pouco eu ergo os braços.
De tempos em tempos abrem as portas, mas a minha inóspita acolhida é sempre mal vista e acabo sempre no meu fastio deserto de areia, boca molestada pela estiagem, olhos cansados e castigados pelo sol a pino impiedoso e sádico que queima a pele branca, e ludibria a mente sensata.
Quem disse que eu queria vencer? Quem disse? Quem falou que queria ser o primeiro esperma? Para que vencemos no início? Para sofrermos depois?
Os zombeteiros ensurdecem meus ouvidos com risadas espessas e zunidos imperceptíveis que vão irritando meus nervos e aflorando minha ira.
A felicidade é invejada. Invejo-lhe no mais profundo âmago, no cerne, na essência. A inveja corrobora minha vontade de sair.
Então abro as portas, olho em seus olhos, pisco com um misto de lascívia e chacota, seus dedos trêmulos hesita perplexo com minha capacidade de ressurreição e quando tu titubeastes pensando onde errou, eu fugi.
E corri, corri até minhas pernas queimarem de cansaço e falta de costume. E chorei, chorei até secarem a fonte de tristeza e infelicidade que reinava em mim, que pairava sobre minha cabeça. E meus pulmões não agüentavam mais receber tanto oxigênio, e meu coração não agüentava mais bombear tão rápido. E com medo de que a epopéia vira um capítulo sem estilo, eu paro. Me viro, afônico pelo medo, atônito pela coragem.
Seus olhos pareciam me consumir. Eu fugi exatamente para onde eu não deveria. Cai na toca do lobo, na lareira pré-aquecida. Sinto-me anestesiado. Sai do medo da incerteza para encarar o medo da certeza. Meu inimigo ilusório agora é real. Meu sofrimento duplica e minhas dúvidas são quadruplicadas. Penso ser um erro ter tentado. Meio ao lodo, à sujeira, ao inferno, me senti aquecido. Agora estou no meu primeiro dia de aula com crianças me olhando, professores me fitando fingindo ser meus melhores amigos, meus maiores aliados, tornando-se meus piores inimigos. Corri em círculos retornando ao ponto de partida, como um circuito, um labirinto. Ele também se surpreendeu com a facilidade, como o verme que cai na boca no passarinho.
Não havia escapatória a não ser que houvesse chuva. E não choveu.
Estava eu preso as pestes e bestas da minha fecunda tragédia. Eu germinei meu fim. Estava certo de que havia errado.
Então eu aceitei o final da história como mero observador. E pela pequena fresta entre as grades e entre as insaciáveis picadas com espinhos venenosos, eu observei e me acostumei novamente com minha realidade imbecil e insuscetível.
Então açoitei com os mesmo espinhos o invólucro que cobria meu corpo e corri novamente, sem perseguidores.
Arrefeceu a febre. Tranqüilizou a lamúria. Inquietou a tristeza. Escarneceu os problemas. Estava incólume, pela primeira vez.
Corri minha estrada. Perdi meu medo. Abri minha porta, novamente.
Abri um sorriso, respirei oxigênio, cai no mar, comi frutas frescas.
A cada porta que eu via fechada, escancarava.
Mas o mais importante. Eu tenho as minhas portas abertas. O lodo se transformou em uma pintura bonita e acolhedora. O aroma era agradável. O abafado se tornou fresco.
O maior problema agora era o tempero, pois às vezes de tão insosso, acabamos exagerando no sal.
Questão de gosto, tempo de costume e auto-controle.