22 de set. de 2009

Quebra-cabeça

Começo pelas beiradas.
Começo por onde parece mais fácil, é mais fácil.
Começo com total segurança, testando o que parece óbvio. Claro que me deparo com muita dificuldade, com muita coisa que parece ser, mas não é. Muitos falsos amigos, falsas paisagens, falsos amores. Encaixes que parecem perfeitos, mas que na montagem do quadro todo, não faz sentido, às vezes até parece que fizemos a escolha certa, mas olhando de maneira mais calma e cautelosa, não é a peça correta. Até as beiradas nos pregam peças. Até o lugar mais lógico perde a lógica quando a nossa lógica não é condizente com a normalidade. Perdemos o foco. Mas a borda é simples, quase obrigatória. Todos começam por lá. Não há muitos erros a se cometer e as oportunidades de sucesso são extremamente alcançáveis. A borda não amedronta ninguém e mais cedo ou mais tarde você completa a borda.
Depois começo pelas figuras com linhas onde é mais fácil seguir. Quer dizer, onde parece mais fácil. Elas também enganam. As linhas às vezes parecem nos levar a algum lugar conhecido, mas nos deixam em maus lençóis. É engraçado como podemos perder tempo em uma só peça, esquecermos das outras, deixarmos de lado e só lembrarmos quando tiramos aquela peça da cabeça. Talvez, esquecemos da peça por não conseguir encaixá-la de jeito nenhum, talvez por encaixá-la e depois encaixar o resto a seu redor.
Peça por peça as linhas vão se encaixando, o desenho vai se formando até que chega a um lugar desconhecido, a um lugar onde você se engana cada vez mais, as peças parecem as mesmas e se você da um passo em falso, perde muito, mas muito tempo. É o tempo de fazer escolhas, de prever o futuro, afinal, daquela peça encaixar-se-ão várias outras e se alguma delas estiver errada, você tem que detectar o erro e começar do zero. A fase nebulosa normalmente é o pântano ou o céu, onde as peças são praticamente iguais e o cenário é o mesmo, mas imprevisível. Você consegue ver o futuro na caixa, mas não consegue enxergá-lo com clareza na montagem. Por isso passa tanto tempo tentando entender porque escolheu essa paisagem para montar. A montagem é demorada sim, mas bem prazerosa quando elas estão se encaixando.
Agora estou quase no final. Tudo está se encaixando com mais facilidade. Por isso me dei um tempo. Tempo para ir até a cozinha e beber um copo d’água. Vi meus amigos, conhecidos e familiares montando seus quebra-cabeças. Cada um em um estágio. Alguns procurando seus erros e como concertá-los. Alguns como o meu, quase montados, verificando se o trabalho todo foi prazeroso. Alguns que ficaram empacados em uma única peça. Alguns que tem vários pontos montados, mas nada terminado. Alguns que se recusam a continuar montando, que desistiram de formar a sua paisagem.
Voltei para a minha mesa. Olhei para a minha paisagem e fiquei pensando em cada uma das peças que eu tinha montado. A maioria eu nem me lembrava, mas as que deram mais problemas e dificuldades, dessas, eu lembrei rapidamente. Nelas eu tive prazer de fazer a minha vida valer a pena. De algumas eu sinto saudade, de outras eu sinto o prazer de estar longe, mas todas elas formaram a minha paisagem, de um jeito ou de outro. A essas peças eu sou muito grato. As bordas formaram a minha estrutura e o corpo eu criei de forma consciente. Mas eu me pergunto se valeu a pena. Eu imaginava uma paisagem mais bonita, mais colorida, mais parecida com aquilo que eu idealizava para mim. Nem tudo sai como a gente quer, já dizia o sábio, mas o porquê ninguém soube me explicar. Tento compreender. Não há muito mais a ser feito nesse estágio a não ser completar o quebra-cabeça. E é isso que eu tenho que fazer. Agora está muito mais fácil, pois faltam poucas peças. E eu vou encaixando e encaixando e encaixando, sem olhar mais nada, sem olhar o tempo passar, sem olhar a vida sendo deixada de lado.
Sobraram-me duas peças na mão. Olhei para frente e vi um espelho. Vi a mim mesmo. O espelho refletia um homem de barba por fazer, cabelo mal cortado, olheiras profundas e não havia vida em meus olhos.
Chorei. Fiquei com raiva e me levantei. Irado, quebrei o espelho, joguei longe o copo d’água, chutei a parede, virei o sofá e quando fui estapear e espalhar o meu quebra-cabeça, alguém segurou a minha mão.
- Olhe para as bordas. – disse.
- Não vejo nada diferente.
- Olhe novamente.
Fiquei atônito com o que vi.
- Não olhe apenas, veja.
E então eu vi. As bordas não eram bordas, eram apenas as minhas bordas e elas encaixavam com outras bordas de outras pessoas.
Não terminei o meu quebra-cabeça. Sigo montando.