7 de mai. de 2008

A Gaiola

Eu tenho medo, muito medo. Eu a temo ainda hoje. Temo a tudo que remete a ela, pois ela é feroz, ameaçadora, cruel, insolente, devastadora, intolerante. Ela corrói suas esperanças, indaga suas certezas, despreza sua felicidade, priva suas vontades, ata seus sonhos, emperra suas conquistas. Por isso me dá medo, medo de perder tudo aquilo que conquistei pela obediência cega do comodismo.
Eu tinha uns três anos quando me lembro das minhas primeiras lembranças. Ela já havia se apoderado de mim. Rotina. Rotina. Rotina. Os grilhões da boa educação e lavagem cerebral não deixavam-me injuriar. Ela me consumia. Consumia meu senso crítico. Estar aqui era como estar suspenso no tempo e no espaço. Estar aqui era estar paralelo a tudo o que ocorria em volta. Eu era cego. Ela me cegava. Minha ignorância era meu pecado, mas não sabia que estava pecando, então poderia ser perdoado, pois eu havia tido minhas asas cortadas, sem saber. Nada era diferente para mim. Minha realidade era aquele meu espaço. Tudo o que eu via, não conseguia distinguir. Comecei a emitir os primeiros sons. Osmose, osmose pura. Não havia referências, não havia estudos. Não havia certo ou errado. Comia quando tinha fome, bebia quando tinha sede. Sempre havia comida, sempre havia bebida. Acordava com o sol, dormia com a noite. Às vezes, o dia chegava sem prévio aviso, de repente. Meus olhos doíam. Minhas pupilas dilatavam, mas com o tempo você acostuma. Quando as intempéries são freqüentes, deixam de ser intempéries, tornam-se apenas eventos imprevisíveis.
Mas pequenos atos tornam-se grandes coisas. De uma pequena pedra no alto de uma montanha, pode-se gerar uma avalanche. E houve algo. Um som. Um som parecido com os sonhos que eu emitia. Então eu gritei. Gritei o mais alto que eu poderia gritar, gritei como se não houvesse amanhã, como se minha vida dependesse daquilo que estava por vir. E então lá estava ele. Algo que eu nunca havia visto. Era quase idêntico a mim, mas estava do lado de fora. Nossos olhos se encontraram e ele me olhou, olhou no fundo dos meus olhos e seu rosto, é indescritível a tristeza que emanava daquele olhar de pena, misericórdia, dó. Ele me olhava como se todas as coisas que havia feito estavam erradas, como se a minha vida não tivesse propósito. Eu o chamava, mas ele não parecia entender o que eu dizia, me olhava, apenas olhava, como se desaprovasse a minha existência. Tu já viste os olhos de quem sente pena? Olhos vazios, tristes, sem propósito, sem lugar, prefiro os olhos de ira, de raiva, de inveja, de medo, eles possuem vida. Olhos de pena são olhos mortos, olhos sem esperança. Eu queria saber o porque e quanto mais eu gritava pedindo uma explicação, mais ele me olhava, mais fundo ficava seu olhar. Então ele abriu as asas, deu uma última espiada e voou. Fiquei de boca aberta, pois ele voava, sem demarcações, sem medo, sem perigo, sem falta de espaço. Ele voava, para onde o vento batia, para onde ele queria, para onde sua vontade e imaginação permitisse. E foi ficando cada vez mais longe, cada vez mais longe, até que meus olhos o perderam de vista no horizonte. E quando a sua presença se tornou apenas uma lembrança, eu abri os meus olhos. Ela determinava meu espaço, meus afazeres, minha vida.
Alguém sabe como é a sensação de liberdade? Abra os braços em um dia de muito vento e sinta cada partícula de ar que circunda seu corpo. Tire a roupa. Contra o vento, seu corpo, apenas o seu corpo sentindo o vento. Sinta seus pés saindo do chão. O vento faz você voar. Coloque seus pés na terra e sinta toda a opressão do seu cerne sendo absorvida pelas raízes das plantas e transformando-se em oxigênio. A natureza liberta e nós aprisionamos. A felicidade é tão simples que nós temos medo que ela fique banalizada. Ela está sempre lá, nas pequenas coisas, nas coisas que realmente faz sentido.
Maldita é ela que me aprisiona. A gaiola, a minha gaiola feita de medo, de sombras, de acomodação, de excesso de dolo, de mentiras e omissões. Minha gaiola. Sou um pássaro de asas cortadas que não consegue voar, preso em uma gaiola linda, que inebria as vontades e coloca em dúvida as suas decisões.
Pequenas coincidências acabam transformando sua vida. Até ontem pensava ser o ser mais feliz que existia, pensava ter tudo o que existia ao meu alcance. Mas não o tinha. Minha ilusão quebrada por cinco minutos de sua aparição. Minha prisão de luxo exposta, meus grilhões finalmente começaram a apertar meus pulsos e calcanhares, minha respiração ficou ofegante, falta-me ar, falta-me perspectivas, tudo o que eu pensava ser verdade era apenas uma parte do todo, uma peça do quebra-cabeça, um por centro da minha capacidade. Minha passividade deu lugar à minha curiosidade. Minha felicidade deu lugar à ansiedade, ao espírito aventureiro que em mim estava repousando. Eu havia acordado. Acordado de um sonho profundo em que eu era apenas a marionete de estúpido passatempo.
Naquela noite eu não dormi. Percebi que o sol que às vezes teimava em brilhar fora de hora não existia, era falso, era simplesmente uma enganação. Não dormi, e via que as coisas estranhas que se mexiam e que eu pensava que iriam me atacar era apenas o público que queria me ver fazendo algo que eu fazia para tentar me comunicar. Eu os agradava. Esse sou eu. Existia para entreter. Existência para o bel prazer alheio. Não tenho querer, não tenho poder, sou apenas um fantoche nas mãos de crianças que podem fazer o que quiser. Meu canto emudeceu, minhas lágrimas começaram a escorrer e eu precisava vê-lo de novo. Eu precisava me livrar do meu mundo de faz de conta, onde ao mesmo tempo não me faltava nada e me faltava tudo. Onde estou no mundo? O que sou eu para o mundo? Qual a minha missão aqui? O que eu vim fazer? Ficar dentro de uma gaiola entretendo pobres miseráveis que acabaram com toda a minha vida? Definitivamente não.
Os dias seguintes foram uma peregrinação ao inferno. A bola de fogo amarela que brilhava e ardiam meus olhos quando eu a encarava, demorou a se pôr. Mas eu prestei atenção em cada detalhe. Na água que era colocada para mim, da comida que estava sempre lá, praticamente na mesma hora. Decorei cada movimento. Faltava-me espaço, ar, oxigênio. Faltava-me propósito, faltava-me, não falta mais. A vida é assim, às vezes chove, mesmo com o sol brilhando. O inesperado sempre acontece. E é o inesperado que acaba mudando as nossas vidas. Eu não estava pronto para ele, ele se apresentou para mim, como um facho de luz na escuridão, um grito meio ao silêncio, que incomoda, que importuna, que inquieta, que transtorna e transforma.
Naquele dia a bola de fogo estava extremamente escaldante, seu brilho era fulminante. Eu teria uns cinco segundos para tentar sair, era quando ela abria sua boca para respirar, onde meu alimento entrava, minha água chegava, quando a liberdade era mais clara e me mostrava o quanto eu era medroso. Mas aquele dia meu coração bateu mais forte, minha vontade era maior, meu medo que diminuía a cada dia substituiu-se pela gana de liberdade que eu adquiri em menos de cinco minutos que aquele pássaro ficou parado do lado de fora da minha gaiola. Eu queria vê-lo novamente e perguntar o motivo do olhar de puro desdém ao qual me foi lançado.
Cinco segundos. E não seria diferente aquele dia. Cinco segundos. Meu coração pulsou quando ouvi os passos do masoquista inconseqüente que me mantinha em cativeiro por puro entretenimento. E então, ela abriu a boca para respirar, eu pensei "quando não se tem nada, não se perde nada." Seria agora ou nunca mais. E então eu corri para a abertura, era um buraco em Alcatraz, era minha única chance, a única lacuna que a repetição mantinha aberta a ferida da desatenção. E eu entrei em pânico. Corri, corri e corri, procurando um jeito de me safar daquele lugar. O monstro que me mantinha aprisionado corria atrás de mim, e eu corria, corria como se um chicote me açoitasse, como se parar significasse o fim da minha vida, e significaria. Eu queria a liberdade, e então comecei a bater as asas, de forma desconjuntada fui procurando os cantos onde tentava obter uma melhor visão. E então eu achei. A janela, de onde vi o pássaro que me trouxa a dignidade e abiu os meus olhos ante a minha ignorância. Enchi os pulmões de ar e respirei o ar puro da liberdade. Eu era livre. Livre da minha gaiola. Livre da minha vida mentirosa e previsível. Eu não sabia o que comeria, o que beberia, que perigos me esperariam, mas eu sou livre. Livre para escolher para onde voar, que caminhos seguir, que escolhas fazer. Livre. A liberdade tiraria minha tranqüilidade, mas me daria algo que eu perdi quando me presentearam com a minha gaiola, um propósito, um objetivo.
E então eu o vi. Ele abriu um sorriso, me olhou nos olhos, espantado e orgulhoso. E então conversamos muito. Ele me ensinou muitas coisas, muitas das quais eu perdi estando preso a minha vida de faz-de-conta. Hoje sei que todos sabemos voar, mas nos falta espaço e oportunidade. Todos podemos bater as asas, mas poucos fazem isso, por medo, por comodismo, por preguiça, ou por ignorância. Todos somos livres, ou podemos nos libertar. É só ter perseverança e consciência de que nem sempre as coisas darão certo, mas se você estiver voando você pode até cair, mas saberá como voar novamente. Durante as nossas conversas, e nossos vôos, eu via várias outras gaiolas, várias outras mentes maravilhosas podadas pelas gaiolas. Algumas delas eram gaiolas feitas pelos próprios pássaros, e isso me fez entender porque aquele pássaro havia apenas me olhado, e não me ajudou quando eu clamei por socorro. É minha decisão sair da gaiola. Ele não me mostrou um caminho certo, ele me mostrou apenas um outro caminho. Poderia ter permanecido onde eu tinha tudo, com todas as facilidades, mas nunca se sabe o que acontecerá amanhã, nunca se sabe quando choverá, mesmo estando em um dia de sol. Você não deixará de ser um pássaro na gaiola, ou fora dela, você apenas decide onde vai morrer. Alguns preferem morrer engaiolados, presos, com destinos pré-determinados, eu decidi morrer voando, livre, decidindo meus próprios caminhos.